Numa cinzenta tarde do mês de abril, um homem ainda se perguntava o motivo de estar naquele cubículo nada aconchegante, entre quatro paredes frias de um velho presídio abandonado como tantos outros que o mundo conhece. Nenhuma prova conseguia incriminá-lo, mas a justiça por questões não esclarecidas mantinha esse velho senhor aprisionado. Lá fora, nuances de frio prenunciavam que o inverno viria mais rigoroso que nos outros anos. Há muitos invernos passa nesse leito mal acobertado o homem que aguarda a liberdade sonhada sem nada poder pagar. A justiça não abre mão de mantê-lo aprisionado, e ele, aguardando quem sabe, outro homem, de paletó e gravata, pasta recheada de papéis e de calçados brilhantes vir libertá-lo. Seu guarda, diz o aprisionado: - o senhor não sabe se neste mês eu consigo um advogado gratuito para me livrar dessas amarras que carrego há quase vinte anos? Infelizmente não sei meu senhor. Mas, esteve aqui na semana passada, um jovem aparentando não mais que trinta anos, perguntando por um nome idêntico ao seu. Disse que voltaria para visitá-lo. Em seguida, diz o guarda, me diga uma coisa: - por que mesmo o senhor se encontra aqui? Bem, respondeu ele: - Numa noite fria e escura, eu e minha esposa Marta, ainda grávida, voltávamos de uma visita a um de seus irmãos, num povoado muito distante de onde morávamos. Já havíamos escolhido o nome do nosso filho. Minha esposa fazia questão de colocar o meu nome, Lúcio, fazendo a mim a homenagem que tanto queria. De repente, inadvertidamente, numa curva me distraí e abalroei outro veículo causando um acidente de proporções inimagináveis. Tomei ciência dos fatos deitado numa cama de enfermaria, onde gentilmente uma senhora fazendo limpeza me contou. Perguntei a ela onde estava Lúcia, grávida por mais de 8 meses. Ela me respondeu, acho que foi para uma maternidade numa cidade vizinha, porque o bebê estava prestes a nascer e o risco de morte era muito grande. Sem que eu perguntasse, a senhora que comigo conversava disse que do lado de fora da porta tinha dois enormes policiais armados, de algemas nas algibeiras, aguardando meu suposto restabelecimento. Fiquei surpreso, mas acatei a ordem que me foi destinada. Saí de lá e fui enclausurado sem que soubesse melhor os motivos da minha prisão. Estou aqui há muito tempo sem saber o que aconteceu à Lúcia e a meu filho que viria ao mundo. Oro todas as noites para receber uma santa pessoa que possa tirar das minhas mãos esses grilhões de ferro fundido que o tempo utilizou para deixar a pele endurecida e com extrema calosidade. Tenho saudades da Lúcia e a esperança de conhecer nosso filho. Eu sei que vou ganhar a liberdade porque não foi proposital meu descuido naquela curva, foi puramente acidental. Ainda no meio da conversa com o guarda, não precisou se desgastar muito, pois seus olhos azulejados avistaram outros olhos não menos azuis que os seus, dizendo: - Boa noite. Sou advogado do Estado e tive a grata incumbência de encontrar nos registros judiciais, ainda aprisionado um nome igual ao meu. Apenas um pequeno detalhe. Ao meu nome, foi agregada a palavra filho. Portanto, meu pai, esperei anos para poder viver este momento de luz e glória levando o senhor para casa. O senhor está livre. Já providenciei a sua soltura. De joelhos sobre o chão frio daquele cubículo, o velho acariciava o filho e de mãos trêmulas dizia: eu tinha certeza que um dia o meu destino se cruzaria com o seu, meu filho.
*Manuel Ruiz é professor e colabora com o jornal