Outro dia eu estava em reunião no anexo do Ministério da Agricultura –debate e preparação do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), a ser lançado este semestre– e um detalhe, que não é tão detalhe assim, chamou-me a atenção. As mulheres que serviam a água e o cafezinho estavam vestidas como aquelas empregadas que muitas vezes se veem nas casas ultrachiques das novelas ou nos filmes que retratam fazendas do século XIX. Um uniforme com lapela branca, borda branca nas mangas dos braços e cores características de serviçais que não abrem ou não podiam abrir a boca, apenas estão aí para servir, mostrando a diferença abissal entre quem serve e quem é servido. Para mim, pareciam as antigas escravas de muitos filmes e ilustrações antigas. Comentei-o com os colegas de reunião de vários ministérios.
Homem –estou falando de homem, masculino– é bicho desgraçado. Ou mais do que esperto, confesso. Explico adiante.
Sou daqueles que nunca teve empregada doméstica paga do seu bolso. Atualmente, como estou em Brasília, a Loiva, amiga e companheira, cuida do apartamento em Porto Alegre, para saber se tudo continua no mesmo lugar, aguar as plantas que teimo em manter vivas, inclusive uma que a amiga Dirce deixou de lembrança e saudade quando deixou Porto Alegre há décadas, e que sobrevive só com água dentro do vaso, sem um palmo que seja de terra.
Na casa de mamãe Lúcia e papai Léo, longínquos anos cinquenta, a escadinha de irmãos, nove, eu o mais velho, obrigava a gente a ajudar pelo menos a enxugar a louça, varrer meio desajeitadamente a sala e a casa grande e pôr a mesa. E ai de quem não o fizesse!
No Seminário de Taquari, idos da década de sessenta, religiosas franciscanas faziam a comida, mas a gente lavava os pratos. Quem cuidava da arrumação da cama e da limpeza do imenso dormitório era cada guri, sob o olhar severo do frei de plantão, que cuidava de cada detalhe da nossa tarefa, se o lençol estava bem dobrado, e assim por diante.
Na comunidade da Vila Franciscana em Porto Alegre, freis e estudantes de teologia, quem era nossa mãe era a dona Valentina, que morava em frente, fazia a comida e cuidava de todos aqueles jovens vindos do interior para a cidade grande, descobrindo a vida e o mundo. A limpeza do quarto era responsabilidade de cada um.
Depois, na comunidade dos freis da Lomba do Pinheiro, vilas na periferia de Porto Alegre e Viamão, anos setenta, cuidávamos de tudo. Até aprendi a cozinhar. Nunca morri de fome ou passei mal por causa dos grudes que fiz e ainda faço eventualmente.
Depois, casado, anos oitenta, ainda na Lomba, eu e a Marta dividíamos (mais ou menos) as tarefas de casa, embora eu sempre fosse o mais lento e preguiçoso.
Só e descasado, a partir da segunda metade dos anos oitenta até hoje, fico me virando mais ou menos, quebrando o galho aqui e ali. Em Brasília, como moro em apart-hotel, não há os problemas de limpeza, arrumação da cama e assim por diante. Mas faço meus grudes à noite e finais de semana.
Mas quando chego em casa de mamãe em Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, me atiro nas cordas. Deixo (quase) tudo para ela nos seus 86 anos, ou para o mano Marino que mora com ela, ou a mana Elma que vem diariamente trabalhar na horta e no pomar, que são as ocupações de agricultores familiares que vendem o que plantam na Feira do Produtor. De vez em quando, lavo minha louça, quando janto tarde da noite. Não cozinho, não lavo louça, não arrumo quarto, não ajudo em quase nada. Um inútil e um homem que deixa tudo para as mulheres fazerem, sem pudor e vergonha!
Por isso, disse acima que o bicho homem é desgraçado. Atira-se nas cordas na primeira oportunidade. Repete o velho mantra: elas fazem tudo, afinal são as cuidadoras do lar!!!
Toda esta longa história para dizer que está na hora de mudar. A Aprovação da PEC 66/2012, a lei das empregadas domésticas, ajuda a colocar as coisas nos seus devidos lugares. Está na hora da escravidão, ou de mais uma escravidão, acabar no Brasil. Empregada doméstica ou empregado doméstico são trabalhadores e sujeitos de direitos como qualquer trabalhador e trabalhadora. A reação de setores da classe média ou da imprensa está sendo semelhante à dos que resistiram ao fim da escravidão do povo negro no fim do século XIX.
A outra escravidão por acabar é a que faz da mulher a prenda do lar, a cuidadora da casa, enquanto ele, o homem, olha seu futebolzinho, toma sua cerveja ou vai passear com os amigos.
Não é fácil. Fugimos do tanque de lavar, da vassoura e do fogão, da divisão de tarefas que nem o diabo da cruz. Achamos argumentos vis, fingimos não estarmos aptos e preparados, falta-nos tempo, precisamos trabalhar para prover o pão dentro de casa, etc., etc., etc. Mas não tem mais jeito. Hora de encarar e assumir. Mulheres e homens têm direitos, responsabilidades, tarefas iguais. A casa, a família, o jardim, os filhos são de todos e todos devem ser seus iguais cuidadores.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República