João era um homem que tentava cumprir todos os seus deveres. Vivia dessa forma para que não se aborrecesse com nada. Assim, pagava todos os impostos, devolvia o troco errado da atendente da padaria e dava seta quando mudava de faixa com seu automóvel.
João fugia do Estado como o diabo foge da cruz. Não queria que os filhos dependessem da educação estatal, trabalhava um pouco mais para pagar as mensalidades escolares. Não queria se preocupar com a má formação no ensino fundamental e no ensino médio, nem com as greves das universidades. João também não usufruía do seu direito à saúde, pois não queria enfrentar filas em hospitais públicos, preferindo pagar por consultas particulares.
João morava em um condomínio fechado, que tinha seguranças particulares, pois podia ir para o trabalho sem se preocupar tanto com as vidas da esposa e dos filhos. Eventualmente, se valia de seguranças particulares.
Lembrava da existência do Estado somente em sentido negativo. Por exemplo, quando seu carro caía em um buraco no asfalto próximo à sua casa, aberto no verão passado, gerando como consequência um grande rombo no pneu, pensava: onde está o Estado? Ou quando, abordado por um mendigo, refletia: como tantas pessoas com ensino superior estavam desempregadas ou trabalhando em subempregos?
Quando foi assaltado em frente a um famoso restaurante, lembrou de inúmeros outros casos relatados por conhecidos e se questionava: onde está o Estado?
Em um belo dia João precisou do Estado. Precisava de uma simples informação. Ligou para o número de telefone informado. Esperou por 30 minutos para ser atendido. Quando finalmente conversou com a atendente, notou que ela não sabia do que se tratava. Foi repassado para outro setor. Mais uma vez, o novo atendente não estava ciente da situação. Preocupado com as horas perdidas, João começou a suar frio. Após falar com cinco pessoas diferentes, sugeriram ligar para outro lugar. Já haviam se passado duas horas. A urgência da situação fez com que João não desistisse.
Um novo telefone, um novo setor, novas pessoas, mas a mesma situação. Ninguém sabia de nada. Após quase meio dia perdido, a situação estava pior do que o início.
Na parte da tarde, se dirigiu a um local sugerido para tentar resolver seu problema. Primeiramente, foi encaminhado para um local com uma cadeira vazia. Uma moça disse que após cinco minutos João deveria perguntar para ela suas dúvidas. Sem compreender, mas quase em desespero, o homem fez o que lhe sugeriram. Sem escutar qualquer resposta, João começou a se agredir e a gritar desesperadamente. Um homem entrou na sala e disse ao nosso protagonista que, naquele momento, ele estava preparado para se encaminhar para outra sala, onde obteria todas as respostas que desejasse.
Havia um fio de esperança. Ao adentrar a nova sala, João notou que ela estava escura. A porta foi fechada. Alguns instantes se passaram. Uma espécie de frio tentáculo se enrolou em volta do seu pescoço. Outros tantos tentáculos penetraram em seu corpo. Num misto de delírio e desesperança, João teve uma espécie de epifania: percebia o sentido disso tudo. Riu. Morreu como um cão.
*Émilien Vilas Boas Reis é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor de Filosofia do Direito e Metodologia de Pesquisa na Escola Superior Dom Helder Câmara