A democracia está em crise? Essa foi a pergunta que a revista britânica The Economist lançou, semanas atrás. Aparentemente, os modelos autocráticos estariam levando a melhor sobre as nações em que imperam as liberdades democráticas, diz a revista. Enquanto a China, com sua economia controlada com mão de ferro pelo Partido Comunista, tem taxas de crescimento invejáveis, os Estados Unidos, a democracia mais madura do planeta, mal conseguem aprovar orçamentos e estiveram à beira do calote duas vezes. O sonho de democracia no Egito virou pesadelo, primeiro com a Irmandade Muçulmana, que se esqueceu de governar para todos, e depois com um novo regime militar, que condena à morte oposicionistas. Não poderia haver época melhor para refletir sobre as virtudes da democracia que essa, quando o Brasil recorda os 50 anos do golpe que tirou João Goulart do poder e instalou em seu lugar um regime militar que durou 21 anos.
O pessimismo com a democracia ao redor do mundo só se justifica num olhar de curto prazo. Não compartilhamos da ironia feroz de Winston Churchill, para quem “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras”. Na verdade, a democracia é a única forma de governo que permite a seus cidadãos desenvolver suas potencialidades ao máximo. Pouco mais de 70 anos atrás, Friedrich von Hayek, em sua obra O caminho da servidão, alertava sobre todos os danos causados pelo excesso de intervencionismo e pelo solapamento da democracia. Economias rigidamente controladas, dirigismo estatal, manias de planificação, concorrência sufocada, tudo isso aleija a sociedade, privando-a da maior força que leva adiante um país: a iniciativa de seus cidadãos. A crítica de Hayek, ainda que feita de um ponto de vista mais econômico e mirando o flerte da intelectualidade ocidental com o socialismo, pode ser facilmente aplicada à vida política e a qualquer centralismo, independentemente da ideologia que o guia.
Isso ocorre porque a democracia é muito mais que a realização periódica de eleições. Afinal, até a Cuba dos Castro, a Coreia do Norte dos Kim, o Iraque de Saddam Hussein e o Brasil dos militares organizavam ou organizam pleitos. Mas em todos esses casos faltavam as outras liberdades que constituem uma democracia sólida: as liberdades de associação e de expressão, que fazem do cidadão, sozinho ou organizado, verdadeiro ator político, capaz não apenas de cobrar do poder público, mas de agir diretamente pelo desenvolvimento do local onde vive; a independência entre poderes, o respeito ao Estado democrático de direito e a primazia da Constituição, que garantem que o governante seja fiscalizado e responsabilizado por seus atos; a liberdade de empreender, que permite a cada um perseguir sua vocação profissional sem um poder estatal a bloquear a concorrência ou a fazer definhar negócios afogados em burocracia; e as liberdades chamadas “positivas”, que dão ao cidadão os meios para buscar sua realização: a saúde, a educação, o respeito à dignidade humana.
O caminho para um Brasil mais próspero no futuro passa obrigatoriamente pelo respeito integral a esses princípios, mas a jovem democracia brasileira ainda convive com a tentação autoritária que busca erodi-las. Boa parte do grupo que chegou ao poder no início deste século (e que inclui pessoas que lutaram contra o regime militar não para democratizá-lo, mas para transformá-lo em uma ditadura de esquerda) não esconde sua admiração pela mais abjeta das ditaduras latino-americanas: a dos irmãos Castro, em Cuba – embora seja preciso reconhecer que a admiração nunca tenha se transformado em tentativas concretas de fazer do Brasil uma Cuba gigante. Também não são poucos os que invejam a Venezuela chavista ou a Argentina que, com sua Lei de Meios, sufoca a liberdade de imprensa – liberdade, aliás, que volta e meia é agredida no Brasil por meio da censura. Getúlio Vargas, que defendeu explicitamente a necessidade da ditadura e abafou a democracia no país com o Estado Novo, é outro que coleciona admiradores justamente por seu lado autoritário. Do outro lado, militantes anticomunistas pedem um novo golpe militar para remover os atuais governantes. Nossa democracia, para se solidificar, precisa de um caldo de cultura democrática – a consciência de que os valores democráticos também dependem de nós e de nosso esforço para evitar um individualismo que nos leva a não nos preocuparmos com a sociedade – e de eterna vigilância para que nunca mais vejamos a noite escura do autoritarismo.