*Ruy Martins Altenfelder Silva é presidente da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ) e do Conselho Superior de Estudos Avançados da FIESP – IRS
Os sempre citados versos de Castro Alves – “a praça é do povo / como o céu é do condor” – são passíveis de várias interpretações e, talvez, um número bem maior de leituras. Grito libertário invocado por aqueles que lutam contra regimes ditatoriais, tais palavras ganham significado diferente em países onde impera o estado democrático de direito, como é o caso do Brasil. Neste segundo cenário, prevalece o império da lei para reger as relações entre os cidadãos e destes com os poderes constituídos, legitimados pelo voto nas urnas ou por normas aprovadas por representantes eleitos pelo povo.
O artigo 5º da Constituição de 1988 consagra a livre manifestação do pensamento, estabelecendo que todos podem reunir-se pacificamente em locais abertos ao público, independentemente de autorização. Mas também estabelece algumas restrições, com o claro intuito de assegurar a ordem pública e evitar conflitos: armas e anonimato são proibidos; exige-se aviso prévio à autoridade competente; o protesto não pode frustrar outra reunião convocada anteriormente para o mesmo local. Além disso, está assegurada “a plena liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar”.
No auge da onda de manifestações iniciadas em meados do ano passado, ganharam as manchetes os relatos de violência contra pessoas e destruição de bens públicos e particulares, chegando ao ápice com a morte do cinegrafista Santiago Andrade, no Rio de Janeiro. Com os ativistas utilizando as ruas e praças como palco para reivindicações nem sempre claras ou pertinentes, as manifestações abriram espaço para os chamados “black blocs”, cuja atuação afronta os direitos constitucionais do artigo 5º, na medida em que tais grupos se caracterizam pelo anonimato (rostos cobertos por máscaras, lenços, camisetas, etc.), violência (ataques a prédios públicos, lojas, agências bancárias, etc.) e porte de armas (madeiras, ferros, bombas caseiras, martelos, coquetéis molotov, etc.).
Essas características foram citadas em palestra proferida pelo coronel Celso Luiz Pinheiro, comandante PM do centro, área preferencial para as manifestações que vêm se repetindo na capital paulista. Ali, ocorreram 953 manifestações e eventos pacíficos e 28 não pacíficos (ou seja, 5,4% do total), em 2013 e até maio deste ano. Há alguns meses, embora os “black blocs” continuem a atuar no anonimato e a realizar preparações que podem configurar atos criminosos, foram identificadas algumas possíveis lideranças, que atuam também em movimentos anarquistas, e também detectada a articulação com outros grupos ativistas. Os analistas observam o peso das redes sociais, tanto para convocação e organização das manifestações quanto para a difusão de ideias e incitamentos a reações, às vezes violentas. Do lado da polícia, entretanto, o monitoramento das redes sociais rende uma boa coleta de informações de inteligência, que permitem planejar ações preventivas. Isso decorre da localização de pedidos de doações em dinheiro e em peças que podem ser utilizadas como armas (antenas de TV tipo “tigela”, capacetes, lonas, colchões a serem incendiados, etc.); sugestões de fabricação de bombas caseiras; e outros indícios.
Há, entretanto, um aspecto que merece, pelo menos, uma reflexão sobre a conveniência de se rever as normas para a realização de manifestações. Longe do autor deste artigo a mais remota intenção de se cercear a liberdade de expressão, um dos fundamentos da democracia e direito conquistado a muito custo pela sociedade. Já dá para notar que a rejeição à violência vem esvaziando alguns tipos de manifestação, mesmo com a divulgação pelas redes sociais. De outra parte, proliferam os protestos promovidos por movimentos ativistas, sobre alguns dos quais crescem suspeitas de que possam ser manipulados por grupos políticos ou mesmo por interesses escusos de lideranças e organizadores. Além disso, mesmo que possam ser classificados na categoria de eventos pacíficos, provocam sérios prejuízos à comunidade, notadamente, ao comércio e a outras atividades produtivas, na medida em que bloqueiam o trânsito em vias importantes, causam imensos congestionamentos e geram transtornos de toda a ordem, instaurando uma espécie de caos urbano que acaba afetando principalmente a grande massa de trabalhadores, em especial nos grandes centros.
Talvez fosse interessante ao próximo parlamento, que será composto pela vontade das urnas de outubro próximo, debruçar-se sobre o exemplo de países que preservam o direito da livre manifestação, sem descurar do também direito constitucional de ir e vir, de ter as propriedades preservadas e de contar com liberdade para trabalhar e utilizar os serviços urbanos na medida da necessidade de cada um.