Prof. Manuel Ruiz Filho é colaborador deste jornal
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Numa tenda feita de restos de objetos, coberta de pano rústico, num banco de pedra não lapidada, sentado do lado onde batia o sol, um neto ouvia do avô a brilhante história de seu povo. Consequentemente, a sua própria história.
Dizia o velho ao pequeno menino: nosso povo é nômade, meu filho e nunca tivemos habitação fixa. Vivemos permanentemente mudando de um lugar para outro. Não nos dedicamos à agricultura porque não conseguimos ficar parados. Nossa vida foi caminhar na areia procurando água para nossos animais que nos abastecem de leite e carne todos os dias. A cada dia somos menos pessoas.
Infelizmente, é preciso que um povo desapareça, para que o resto do mundo saiba que ele existiu. Sempre lutei para preservar nossa gente e o farei até o fim da minha existência. No meu tempo de luta, quando me encontrei sozinho, sempre consegui ouvir os batimentos do próprio coração. Despertávamos com a luz do sol observando os animais que nos abasteciam de leite e carne, preocupados em levá-los onde havia água e pastagem. Assim viveram nossos antepassados, seus avós, bisavós e os meus também. Não havia outra coisa no nosso mundo e eu sempre fui muito feliz com isso. Vivemos dois mundos diferentes, o seu e o meu. Sempre fomos apaixonados pelas coisas simples, isto porque já nascíamos simples. Ninguém precisava lutar para chegar naquilo que já o era.
Para você ter uma ideia, meu neto, quando pisei pela primeira vez no continente europeu eu não me contive vendo as pessoas dentro de aeroportos, correndo de um lado para outro simplesmente para pegarem suas malas, parecendo nosso povo fugindo de tempestades de areia. Fiquei assustado com o que vi. Observei quadros enormes expondo mulheres seminuas fazendo lançamento de produtos de consumo que nunca toquei. Um desrespeito para com a figura santa de uma mãe.
No hotel, entre quatro paredes, observei pela primeira vez uma torneira jorrando água. Confesso que meus olhos lacrimejaram de ver esse desperdício. Nos jardins, fontes jorrando água me impressionaram muito e me fizeram lembrar a dura realidade de nosso povo a procurar pocilgas para matar a sede de quase uma semana.
Lembro-me como se fora hoje, eu tinha doze anos, minha mãe partiu para o sempre. Foi embora a mulher que me ensinou a ser eu mesmo. Nesse mesmo período morreram muitos de nossos animais e muitas pessoas de nosso povo também se foram. Por sorte, convenci meu pai que me deixasse frequentar uma escola. Eu caminhava 15 quilômetros diariamente para chegar até o local. Quase morri de felicidade quando meu mestre arranjou um lugar para eu dormir e uma senhora me dava o que comer toda vez que eu cruzava o seu caminho. Percebi nesse gesto que minha mãe continuava me amparando. Certa vez, passou pelo nosso acampamento um pessoal que fazia reportagem sobre uma famosa corrida de carros e uma jornalista me presenteou um livro. Prometi a ela que iria lê-lo por inteiro. Era um pequeno livro que tinha na capa as palavras Pequeno Príncipe e, graças à inspiração desse livro, na busca do conhecimento, consegui entrar numa universidade francesa. Quem diria! Um nômade que a sociedade repele estudando como gente numa escola de primeiro mundo.
Mas a mim fazia falta o leite de camela que me alimentava todas as manhãs, assim como o calor da fogueira e o andar com os pés descalços na areia quente. Lá no meu mundo eu olhava as estrelas todas as noites. Aqui a gente não vê outra coisa a não ser propaganda em televisões de luxo. O povo se queixa e tem de tudo, mas não acha suficiente. As pessoas querem subestimar as outras em todos os sentidos.
No deserto não há congestionamentos e você sabe por quê? Porque lá ninguém quer ultrapassar ninguém! Valoriza-se muito o relógio por aqui. Lá nós dávamos importância ao tempo. Na vida o tempo não deve ser dominado pelos marcadores dessa máquina. O tempo é sagrado, porque pode ser comparado com os rios. Você não pode tocar a mesma água corrente por duas vezes, a água que passou não tem retorno e não passará novamente. É preciso aproveitar a vida meu neto, encontrando tempo para vivê-la. Se você viver dizendo que está ocupado jamais se encontrará livre. Se você não usar o seu tempo durante o dia, você será um perdedor, porque é impossível voltar atrás. Valorize o tempo meu filho, compartilhe seu tempo com outros e só assim terá vivido plenamente seus dias.