Era uma garota muito magra, uns doze, treze anos, com cabelos e unhas quebradiços; às 9:00 horas da manhã, sob o sol forte, no semáforo. Distribuindo panfletos de um empreendimento imobiliário.
Sorriso ingênuo e bondoso. Olhar inteligente. Esforçada e correta.
O que está garota está fazendo fora da escola, meu Deus?
Hoje é dia de aula. Nesse sol forte.
Eu nunca vi isto. Aqui na zona sul.
Abaixo o vidro, pego o panfleto.
E uma tristeza imensa invade meu coração.
Essa sociedade brutal, tosca, forjada nos trópicos permite, em pleno século XXI, crianças alijadas de seu futuro. Uma sociedade ignorante que se auto-alija do futuro.
Ela vai ter que trabalhar muito, estudar muito, esforça-se ao extremo. Mal alimentada e mal dormida, pra conseguir, quem sabe, um dia, chegar à classe média dos trópicos.
Aquela que frequenta alegremente shoppings e se sente muito feliz e realizada com um smartphone novo. Em doze prestações.
Vai entregar sua juventude e todo o seu potencial em troca, quem sabe - e com muita sorte -, de uma casa financiada a juros a 14, 15% ao ano, pagando três, quatro vezes o mesmo imóvel. Naquele bairro lá longe.
Com milhares de livros e ideais fechados a ela. Sem acesso.
Conhecer outras línguas, outros países, outros modos de vida e de ser. Não vai.
Seu horizonte vai se apequenar mais e mais.
E não vai passar dali. Do seu bairro limitado por ideias postas.
O sorriso ingênuo e bondoso vai dar lugar a um semblante vincado. Com cantos da boca caídos e o olhar de quem acha que viu tudo nesta vida. Mas não viu nada. Ou muito, muito pouco.
Do imenso espectro da sordidez que conduz o mundo. Da sordidez imensurável que conduz republiquetas do terceiro mundo.
E tão grande que poderia ser. Desenvolver-se.
Não com bolsas disso ou daquilo. Facilidades sem contraprestação.
Não é disso que se trata.
Mas de uma ação minimamente honrada, de dar futuro a crianças sem perspectiva.
Disciplina.
O princípio, o vetor inalienável de toda e qualquer forma de desenvolvimento: disciplina.
Um mínimo de dignidade para crianças, e, principalmente para quem governa.
Quem assume a responsabilidade maior.
Porquê, responsáveis, somos todos.
E todos, de um jeito ou de outro, pagamos por nossa omissão.
Impressionar-se, horrorizar-se, com a falta de educação, sobriedade, ou sensatez de uma sociedade é muito fácil, quando se exclui a si mesmo do contexto que levou ao estado de coisas que impressiona.
Neste bananal caótico foram décadas de omissão.
De todos. Todos.
O caso é que, hoje, expostas todas as vísceras da República e ante a nausente visão que se tem, a ninguém mais é dado o direito de eximir-se.
E eu estou contando a você, que, hoje, às 9:00 horas da manhã, de um dia de aula, tinha uma garota no semáforo distribuindo panfletos. Sob o sol forte. Fora da escola. Fora jogo. Fora do jogo da vida.