Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
A madrugada estava fervente. Sentia-me como se estivesse preso em um planeta de lata que recebia ininterruptos sopros de dragões. Temperaturas tão elevadas aniquilam o ânimo. Tomei uma cerveja gelada, depois outra, outra e outras mais e o calor persistia. Peguei o violão e dedilhei uma canção antiga, tentei ler um livro, e nada. Não tinha como amenizar o calor infernal. Estava longe do mar, de rios, riachos, lagos ou coisa afim, não obstante, torci para que um iceberg ancorasse por ali – um devaneio.
Fui ao quarto e olhei para Madalena, linda e nua, deitada na cama. Na janela do quarto tinha uma fina tela de proteção que barrava a entrada dos insetos e permitia a entrada do vento. Mas o estratagema da tela não estava adiantando de nada naquela madrugada, ou melhor, servia apenas para barrar a entrada de insetos, já que não havia vento para entrar.
Madalena estava deitada de bruços. No primeiro parágrafo, registrei que temperaturas elevadas aniquilam o ânimo, agora digo que é impossível olhar para o monumental corpo de Madalena e não ficar animado. Fui atingido em cheio pelo sopro dos dragões, não resisti. Acordei Madalena com mordiscadas no lóbulo. Beijei sua nuca, nádegas, coxas... Não recordo a ordem, mas passeei por todo o corpo de Madalena. Sussurramos palavras íntimas que não revelarei. O calor aumentou, é claro.
Depois de visitarmos o paraíso tomamos um banho a dois. Madalena voltou para a cama e eu tomei um uísque. Depois resolvi dar uma volta pelo bairro, caminhar a esmo, zanzar sem rumo – outra tentativa de burlar o calor infernal.
Não se pode evitar o inevitável, isso não é uma redundância e sim uma constatação. Eu caminhava displicente na madrugada quente de estrelas apagadas pela poluição. O encontro aconteceu em uma rua que apresentava iluminação de boate. Ele surgiu de repente e, quando dei por mim, estava em minha frente, de maneira que não me foi possível retornar, sequer mudar de calçada. Estávamos separados por não mais que dois metros. Olhou-me resoluto nos olhos e perguntou:
“Estou perdido, você poderia me ajudar?”
“Claro, conheço bem a área”, respondi, assim que me refiz da surpresa.
“Fico-lhe agradecido”, ele disse, “ando meio confuso ultimamente, estão destruindo minha casa.”
“Quero aproveitar nosso encontro para pedir desculpas”, eu disse, enquanto caminhávamos lado a lado, “em meu nome e em nome dos outros, peço sinceras desculpas, sabe como é...”
“Sei, sei como é, entre os homens, a ganância supera a razão”, ele disse, “fique tranqüilo, está desculpado, talvez haja um roteiro para a história de tudo e de todos.”
Foi uma longa caminhada até chegarmos à floresta – ou o que dela restava.
“Obrigado por me mostrar o caminha de casa”, ele disse.
“Ajudá-lo foi um prazer”, eu disse, “e desfrutar de sua companhia, um grande privilégio.”
“Quando quiser, apareça, será sempre bem-vindo em minha casa”, ele disse, e emblemático, arrematou, “minha casa é sua casa.”
Sorri honestamente agradecido por sua amizade. Olhei temeroso para as grandes garras de suas patas anteriores, mas não recusei seu abraço. Pouco depois vi a cauda longa e peluda do tamanduá-bandeira desaparecer na mata.
Fiquei pensando em Madalena e cheirando o mato até que a cor branca rosada da aurora se fez presente, prenunciando a chegada de um novo dia.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal