Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Enquanto cruzava a praça com passos trôpegos, lançou um olhar de fascínio aos hipopótamos listrados que voavam abaixo das copas das esparsas e esquálidas árvores. Um grupo de girafas dançava uma dança de rua no meio da praça, próximo ao local onde outrora havia uma fonte.
O homem cumprimentou as girafas e sentou-se em um banco quebrado para descansar. Fez um esforço hercúleo para lembrar o próprio nome; vã tentativa, se ao menos houvesse algum conhecido por perto, poderia perguntar. Mas, os hipopótamos listrados e as girafas não o conheciam. Pensou no sobrinho Lauro – curioso, não lembrava o próprio nome, mas o do sobrinho, sim. Lauro era, de fato, inesquecível, um gênio, tanto que, aos catorze anos de idade, já conseguia amarrar os cadarços dos sapatos e até vestir uma camisa sozinho, sem contar com a ajuda de ninguém.
A fome chegou de chofre, como tinha de ser. O caju que via no abacateiro parecia ótimo, mas, não podia alcançá-lo. Qualquer uma das girafas seria capaz de alcançar o caju, mas o homem que esquecera o próprio nome não era amigo de nenhuma delas, além disso, todas estavam entretidas com a dança de rua – girando ininterruptamente com a cabeça no chão e os pés bailando com os hipopótamos listrados. Levou a mão à cabeça e ela estava quente, a cabeça, não a mão.
Lançou o olhar um pouco adiante, para além do amontoado de lixo. Na fachada do salão descascado estava escrito: antes que o mal cresça, faça a cabeça.
A fome persistia. Uma fome concreta que fazia doer. Não uma dor física, tampouco aquela que alguns costumam denominar dor na alma; era uma dor inexplicável. Quando se passa fome durante décadas, dia após dia, chega-se ao ponto em que, além da fome, a certeza de que não irá obter alimento também causa dor.
E o caju esperava convidativo no abacateiro. Bom seria se surgisse – entre os hipopótamos voadores e listrados e as girafas dançarinas – uma centopéia gigante para colher o fruto, entregá-lo àquela que faria a mediação e... É isso, seria bom efetuar a reedição do pecado original, ainda que um pouco mudada.
Caminhou em direção ao galpão descascado. Tropeçou em algo e foi ao chão e a queda provocou um barulho ruim de se ouvir, como se um alforje cheio de palitos caísse sobre um muro. O algo em que tropeçara era o corpo de uma pessoa, um corpo sem vida. A inanição estava matando quase tanto quanto a radiação e a ação e/ou omissão dos homens poderosos. O homem que esquecera o próprio nome deslizou os dedos ossudos – polegar e indicador - pela face do morto e, num gesto compassivo e instintivo, cerrou-lhe os olhos.
Os últimos livros que desapareceram do planeta mencionavam um tempo remoto em que era possível mergulhar em lagos de água cristalina, sentir a balsâmica sensação de estar próximo a uma cachoeira e beber água limpa da fonte. Mas o desperdício provocou o colapso e água potável virou artigo de luxo; as fontes das cidades foram esvaziadas e o governo passou a usá-las como depósito de lixo.
O homem sem nome olhou para aquele que acabara de fechar os olhos e viu outro companheiro que, finalmente, libertara-se. Um último esforço mental fez o homem sem nome imaginar como teria sido mergulhar nas águas transparentes de um rio ou abraçar uma russa de pele rosada e lábios polpudos... Coisas que os antigos livros diziam, mas nem mesmo os livros tinham sobrevivido.
O caju continuava no abacateiro. O cavalheiro terminou a leitura do texto e nada entendeu. O entendimento está mesmo em baixa.