Chegou à cidade como um andarilho, por isso mesmo, ninguém sabia dizer de onde viera nem quando chegara, já que os andarilhos são invisíveis aos olhos da multidão. Mas nele havia algo estranho à época em que vivia aquela sociedade, talvez o olhar bondoso, os gestos polidos, a serenidade, enfim, características marcantes e em desuso naquele tempo de insensatez e rispidez.
Durante os dias, simplesmente circulava pela cidade tomando um trago aqui, outro ali, e comendo o que lhe era oferecido por algum compassivo morador do lugar. Durante as noites, descansava o corpo em algum canto. O rosto vincado e introspectivo era típico de um homem velho, não de uma velhice habitual, mas como que traçada em tempos outros: uma aparência de Homero, Píndaro ou Ésquilo.
Sobre a própria idade, o velho, invariavelmente, era enigmático:
“Em relação ao pé de alface sou muito velho; em relação à montanha, muito novo; mas para um exemplar do gênero humano estou com a idade ideal.”
O velho começou a despertar interesse, chamar a atenção por sua simpatia e afabilidade, além de falar como um sábio – algo que mais e mais rareava na sociedade marcada pelo banal. Certo dia, um jovem de trinta e poucos anos aproximou-se do velho e convidou-o para uma cerveja, convite que foi prontamente aceito pelo ancião.
Estavam os dois frente a frente, sentados à mesma mesa. Sobre o tampo de madeira, dois copos abastecidos com o líquido e uma garrafa. O jovem percebeu durante a conversação, que o velho era uma pessoa culta, com quem era possível dialogar em alto nível sobre quaisquer assuntos.
“Eu o olho à distância desde que o senhor aqui chegou há cerca de dois anos”, disse o jovem professor.
“Mas eu aqui cheguei muito antes de você nascer”, observou o velho, “eu o conheço desde o tempo em que você era filósofo.”
“Mas eu sou filósofo, sou professor de Filosofia.”
“Há uma diferença, quando filósofo você era livre, ao se tornar professor de Filosofia, prendeu-se ao sistema vigente e foi engessado por convenções acadêmicas.”
“Ainda conservo o sonho de operar uma metamorfose na sociedade, instigar o pensamento e despertar o senso crítico, tenho uma marreta com a qual arrebento, diuturnamente, as camadas de gesso às quais o senhor se refere, é uma luta feroz, estafante e que, por vezes, parece infinda.”
“Acaba de dizer o que eu queria ouvir”, disse o velho, aliviado, “só os homens raros são capazes de pensar além de si mesmos, ousar e voar, transcender o indivíduo em si e sentir-se humanidade.”
“A humanidade foi doutrinada ao longo de toda a história, treinada para acatar, aceitar e viver sob o jugo de leis que foram criadas por uma ínfima minoria, e pra piorar, rebelar-se significa subverter a ordem, o que é passível de punição.”
“A humanidade dorme, o ideal seria a formulação de juízo a partir do próprio pensamento, mas o pensamento está em declínio, neste quadro, optar pelo caminho da minoria é a fórmula mais indicada para diminuir a probabilidade de errar; no devido tempo, o homem vai acordar do longo sono e, ao despertar, conhecerá a verdade.”
“Então devemos esperar por um doutor que possa nos apontar a verdade?”
“Ah, a verdade! A verdade é que há mais verdade no vôo de um pássaro que na soma das falas de todos os doutores do mundo, meu caro professor.”
E o velho se foi. Precisava cumprir seu duplo ofício: caminhar e conversar.