Tony Rocha (Foto: Divulgação)
Talvez eu já tenha dito ao senhor que, em tese, todo texto é um teste e que nenhum ocaso é um acaso – caso tenha dito, acabo de repetir.
O início foi nos idos de nem me lembro que ano. Recordo, entretanto, que estava parado, viajando próximo à linha férrea que fazia a conexão sideral. Naquela época eu lia os filósofos, mas, duas páginas centrais de Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo, tinham me tocado profundamente.
Acredite o senhor ou não, eu que vivia empreendendo viagens entre as estrelas, fui aprisionado quando a vi pela primeira vez. A partir de então, todas as noites de sábados, domingos e feriados, eu a via descer a avenida com seus graciosos passos ritmados. Acabei por me prender ao compasso dos passos da moça.
E eu, revolucionário e arredio, calado e desconfiado, continuei a sê-lo, mas passei a escrever poemas, poemas de amor inspirados pela moça, o que até então não fazia. Note que, a moça, ao mesmo tempo se tornou meu norte e me desnorteou. Há muito as pessoas dizem que sábados, domingos e feriados não são dias úteis, para mim, no entanto, passaram a ser os únicos dias úteis da semana – dias em que ela, a moça, iluminava minha vida e a avenida com sua dulcíssima presença.
Ratificando o já mencionado, naquela época eu ficava debruçado em cogitações, lambia Filosofia horas a fio. Heráclito me falava sobre o eterno fluir, e Zenão, de Eléia – levando ao extremo o pensamento de Parmênides -, afirmava que o movimento não existe. Então veio a moça e me mostrou uma fluidez nunca dantes por mim experimentada. Embora pareça estranho, o mundo avançou e ficou estagnado. Ela, a moça, transformou-se em meu som e meu silêncio e fez meu existir mergulhar, ao mesmo tempo, num oceano quedo e numa bravia cascata de fluxo contínuo e acelerado.
Hoje vejo a moça a qualquer hora do dia ou da noite, no sol, na lua, em tudo que o vento leva e traz. Ontem mesmo, caminhando por uma rua sem a estreita obrigação de chegar a um lugar específico, deparei-me com uma esportiva caixa metálica dessas que são usadas para transporte de carcaça – um automóvel baixo e imóvel. Então a moça me tocou, peguei o bloco de anotações e a caneta e escrevi um poema.
O senhor compreende? A moça me arrebata da frivolidade cotidiana, eleva-me às estrelas e me entrega sonhos, ela construiu um mundo que se assemelha a uma cebola – com camadas de poesia. E eu vivo nesse mundo e se tentar cortá-lo é certo que vou chorar, se o senhor já cortou cebola sabe do que estou falando.
Não vai aqui queixa alguma. Saiba o senhor que estar preso ao mundo da poesia é viver e respirar liberdade plena. Poetas são pássaros estelares, astrônomos que riscam o firmamento a colher poemas. O limite do poeta não é uma linha intransponível, mas uma leve cortina que a sensibilidade remove permitindo a ele, o poeta, avançar. Avancei, finalmente, no glorioso dia em que dominei a timidez e me apresentei à moça e, enchendo-me de coragem, falei sobre seus encantos.
“Doravante estaremos sempre juntos”, disse-me ela, em plena Via Láctea, “meu nome é Urânia, céu, em grego, musa da Astronomia.”
No começo era o silêncio; no final, também será; entre um e outro e em ambos – silenciosa e/ou ruidosa – habita a poesia. Meus pés não tropeçam porque sou alado. Nada me apoquenta, nem mesmo a saudade, a quem rendo homenagem, pois me oferece a certeza de que tenho um passado. E quando vem o ocaso, colho gotas de poemas brilhantes e declaro amor a minha musa. Rio do rio de suas rasas relevâncias, senhor. Compreende o texto agora? Urânia me apresentou ao amor. E me salvou!