“Eram duas personagens apenas, o Senhor Energia e o Nada”, ela disse de maneira delicada, “por ser onipresente, Energia estava, ao mesmo tempo, dentro e fora de Nada, este, por sua vez, queria evoluir, galgar degraus, deixar a condição de insípido Nada e, se não fosse possível transmutar-se em Tudo – atingindo assim o píncaro existencial -, ao menos chegar a ser Algo.”
Após certificar-se de que eu estava atento à história que narrava, prosseguiu:
“De tanto habitar o Nada e para ele olhar, uma incômoda apoquentação acabou por invadir Energia que, por ser onipotente, decidiu fazer com que Nada obtivesse progresso. Durante seis dias Energia trabalhou e, embora não existisse coelho nem cajado até então, matou dois coelhos com uma só cajadada: tranqüilizou Nada, realizando seu veemente e impaciente desejo de mobilidade, e resolveu seu próprio problema, eliminando a amofinação na qual estava mergulhado.”
“Em seis dias de trabalho, Energia transformou Nada na base de Tudo”, continuou, “por ser onisciente, Energia conhecia até mesmo o que estava por vir, sabia, por exemplo, que num longínquo futuro ocorreria uma explosão que ficaria conhecida como bigue-bangue, em inglês, big bang – grande explosão -, mas para Energia não seria tão big assim, para Ele seria não mais que uma batida de blues ou rock-and-roll. O bigue-bangue ficou conhecido como o evento que teria dado origem à formação do universo – era um ensaio musical de Energia.”
Permaneci calado. Sua voz doce continuou a soar:
“Após ter criado a matéria – tudo aquilo que possui massa e ocupa lugar no espaço – e o corpo – porção limitada da matéria -, Energia realizou seu trabalho mais importante: a disseminação de sementes de possibilidades; as sementes germinaram, transformaram-se em árvores frondosas que deram flores e frutos.”
Então ela adotou um tom solene, como se estivesse se preparando para a parte mais importante da história e deu seqüência ao relato:
“As árvores de possibilidades ocuparam todos os espaços, dentro e fora da matéria, e seus frutos são as realizações. A semeadura de possibilidades aconteceu no sétimo dia, e como a esmagadora maioria dos homens não consegue enxergar o implícito que habita a vastidão do campo de possibilidades, propagou-se a idéia de que Energia teria descansado no sétimo dia; é por isso que, entre outras imperfeições, embora o mundo seja repleto de poesia, há poucos poetas.”
“Graças ao trabalho realizado por Energia no sétimo dia, quando espalhou sementes de possibilidades”, ela arrematou, “a história final – última ou derradeira – não existe e não existirá jamais. Em qualquer tempo, em qualquer lugar, será sempre possível colher uma nova história; assim, pode-se afirmar, à guisa de dedução interpretativa, que todas as histórias – exceto a primeira – são intermediárias.”
Eu desconhecia o cenário em que estava. Tampouco conhecia a moça da narrativa. Arrisquei a dupla pergunta:
“Onde estamos? Quem é você?”
“Estamos todos conectados e inseridos na fascinante aventura que é a história”, ela explicou com delicadeza, parou por um momento e, apresentou-se, “meu nome é Clio, glória, em grego, sou a musa da História. Lembre-se: Energia existia antes de Nada e existirá depois de Tudo.”
Quando acordei, pensei em tudo que Clio soprou aos ouvidos de Heródoto e de todos os outros. Respirei fundo e escrevi a história que me fora narrada no sonho.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal