Tony Rocha (Foto: Reprodução)
Por volta do meio-dia de um dia cinza, outra leva de passageiros foi despejada na plataforma. O metrô linha 347 fazia isso diuturnamente, com a regularidade com que a areia escoa pelo orifício nos vértices dos vasos cônicos da ampulheta. Assim que foram jogadas na plataforma, as pessoas iniciaram uma corrida desenfreada, como guepardos desorientados. Mas, entre aqueles passageiros, tinha um homem estranho, um homem que destoava dos demais.
O homem estranho era estranho por ser comedido, um estranho naquele ninho de agitação, estresse e desordem. Saiu da plataforma e entrou em uma avenida sem árvores e triste. Caminhou com passos lentos, parando aqui e ali para ler as pichações sem nexo em muros e paredes.
Eram dias cruéis. Volta e meia surgia um novo vírus e deixava a população em pânico. Caminhando lentamente, o homem assoviou uma canção antiga e deixou a mente viajar. Regressou algumas décadas e, com um gosto amargo na boca e um nó na garganta, lembrou-se de como ocorrera os primeiros passos que conduziram ao caos.
Pensou no tempo em que, em nome da lei e da ordem, organizou-se, sorrateiramente, a repressão. Chegou ao poder um homem de perfil totalitarista e deselegante, um especialista em criar beligerâncias. O primeiro passo do plano foi coroado de pleno êxito: dividir a sociedade e, desta forma, torná-la fraca e débil; de fato, velhas amizades chegaram ao fim, casamentos foram desfeitos, familiares trocavam insultos e, por toda parte, agressões se repetiam.
Na sociedade dividida, as grosserias proferidas pelo chefe beligerante eram farpas de arame que voavam, riscavam o ar, penetravam a pele e feriam os ouvidos dos homens sensatos, ao passo que outro grupo de pessoas, defendia e aplaudia as grosserias do líder. A intenção era minar paulatinamente a resistência e instalar a ideologia da truculência; e tal intenção se concretizou com total sucesso.
As pessoas corriam e tropeçavam em obstáculos invisíveis e, chocavam-se umas às outras. Finalmente o homem chegou ao endereço que procurava: o restaurante onde era possível encontrar todos os pratos. Entrou e ocupou uma mesa.
O garçom caminhou até a mesa e disse ao cliente:
“Gostaria de consultar o cardápio, senhor?”
“Não será necessário, busco por um prato específico, um prato que estou procurando há décadas e não consigo encontrar.”
“Pois veio ao lugar certo, aqui podemos providenciar todo e qualquer tipo de prato, o senhor escolhe o custo, o valor calórico e o tempo de preparação, asseguro-lhe que, para nós, providenciar seu pedido será um grande prazer, temos profissionais gabaritados na alquimia do sabor, profissionais especializados nos mais variados temperos: sal, pimenta cebola, alho, salsinha, manjericão, orégano, coentro, canela, louro, cravo-da-índia, erva-doce, pimenta-do-reino, páprica, tomilho, noz-moscada, cominho, cardamomo, zimbro...”
“Já entendi, mas, o prato que procuro é exótico: cabeça pensante ao molho.”
O garçom se afastou. Pouco depois regressou com o cozinheiro, olhou para o cliente recém-chegado com olhar triste e, desolado, disse:
“Infelizmente, falta-nos o ingrediente principal, senhor, não existe mais cabeça pensante no mercado.”
O homem comedido notou um brilho estranho nos olhos do cozinheiro e correu de volta à plataforma. Por pouco sua própria cabeça não foi servida em uma bandeja.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal