O capitalismo entrara em colapso havia pouco tempo. Ocorrera quando os explorados tomaram ciência da selvageria do sistema e, organizados, decidiram por um grito de basta. O brado de liberdade foi definido pelos historiadores como: Definitivo Grito de Liberdade dos Miseráveis.
Uma Nova Era estava começando e os caminhos a percorrer era uma incógnita – a rota a ser seguida seria traçada pelos passos dos homens. Antropólogos faziam malabarismo mental na tentativa de descobrir para onde marcharia a humanidade, mas, o único ponto de concordância era que o processo fora desencadeado com a constatação de que os seiscentos e sessenta e seis homens mais ricos do mundo tinham mais dinheiro que a soma dos bens de todo o restante da humanidade.
O fato é que, segundo mostra a história e prevê a análise racional e razoável para o porvir, enquanto o homem caminhar pelo planeta, haverá luta de classes, já que aqueles que retêm o poder não querem dele abrir mão e não recuam um milímetro sequer. A reação dos poderosos foi organizar um Grupo Armado encarregado de aprisionar os responsáveis pelo Definitivo Grito de Liberdade dos Miseráveis.
Era um dia sem graça de abril como costumava ser todos os dias de abril ou de qualquer outro mês daqueles dias. Um dia com uma densa e escura nuvem de poluição cobrindo o planeta e pessoas de máscaras zanzando pelas ruas como errantes zumbis.
Naquela manhã de abril, Aurélio caminhou até o portão de sua residência, onde parou por alguns minutos, olhando para as pessoas mascaradas que passavam. Com acenos de mão, cumprimentou e foi cumprimentado pelos transeuntes. Abriu o portão e iniciou sua caminhada matinal rumo à praça. Caminhara cerca de setenta metros e, antes mesmo de chegar à esquina, um carro do Grupo Armado parou a seu lado, junto ao meio-fio. Quatro homens ostentando fardas saltaram do veículo e barraram a passagem de Aurélio. O líder do quarteto o encarou com severidade e perguntou:
“Seu nome é Aurélio Mariano Maestro, professor e escritor?”
“Sim, sou eu”, disse Aurélio, economizando na resposta.
Ante a resposta afirmativa de Aurélio, um dos homens o algemou, empurrando-o em seguida para o interior do veículo. Dois homens fardados seguiram na frente; os dois outros ladearam o detido no banco traseiro. Enquanto o carro rodava, Aurélio permaneceu calado, sabia que seria inútil argumentar. O interior daquele veículo não era uma sala de universidade e aqueles quatro homens não eram catedráticos eruditos.
O carro estacionou em frente ao prédio de linhas sóbrias onde funcionava o QG do Grupo Armado – o tentáculo dos poderosos encarregado de desmantelar o Definitivo Grito de Liberdade dos Miseráveis e restaurar a ordem. Na sala de depoimentos, um senhor alinhado encarou o professor Aurélio e disse:
“Pesa sobre você a acusação de ser um escritor subversivo, além disso, temos um vasto material onde aparece entabulando conversa com várias pessoas, na praça.”
“Minha literatura é ficcional, asseguro que não representa nenhum perigo.”
“Não seja modesto, você é de altíssima periculosidade, instiga os jovens à baderna e dissemina idéias comunistas, o que culminou com o caos social.”
“Quando o abordamos, ele estava pensando em rock-and-roll, doutor”, disse o chefe do quarteto fardado, apontando para Aurélio.
“Hum, isso piora o que já era ruim, o rock conduz às drogas que conduz ao sexo, que conduz ao aborto que, por sua vez, conduz ao satanismo.”
No dia seguinte, Aurélio não foi visto na praça. Nem compareceu à sala de aula.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal