Escolhera a dedo aquele apartamento de bairro tradicional e pacato, um dos poucos redutos tranquilos na cidade. Da janela era possível ver uma praça bem arborizada onde crianças brincavam - era como um oásis de calmaria na insana agitação da metrópole. A cena de crianças correndo proporcionava-lhe um mergulho no passado, à própria infância de menino livre e sonhador. Chamava-se Evaristo, tinha setenta e dois anos e conservava a convicção de que a liberdade é essencial, quanto aos sonhos, toda vez que realizava um, o substituía por outro. Tinha um lema: um homem sem sonho é um homem sem razão de viver.
Pela janela do apartamento, Evaristo olhou para a praça e não viu nenhuma criança e nenhum adulto, não viu viva alma. Volta e meia um automóvel aparecia e rapidamente desaparecia do campo de visão do velho observador que, por um momento, sentiu fragmentos de lembranças escoarem em sua memória, como rápidas visitas de tempos idos. Melhor assim, não queria mesmo fixar-se em uma saudade específica. Tudo o que até ali vivera tinha valido a pena.
Morava há décadas naquele apartamento. Muitos pequenos que vira correndo lá embaixo, na praça, tinham se tornado adultos, alguns bem-sucedidos, outros nem tanto. Mas Evaristo era amigo de todos, de todo o bairro. Conhecia aquele pedaço da cidade como a palma da própria mão ou como um livro do qual era co-autor.
Parado em sua janela, Evaristo lambia difusas lembranças de aventuras passadas, das mulheres que preencheram seus sonhos e realidades. Houve um tempo em que julgava ser apenas alguém que sonhava, depois descobriu que justamente os sonhos o faziam ser alguém. Escrevera poemas para todas as mulheres por que foi apaixonado – e foram muitas. E naquele momento, o que via da janela parecia uma aspiração congelada, apenas retalhos de lembranças davam sentido à existência.
Era inevitável pensar como um poeta já que era um poeta. Pensou em como seria a chama de uma fogueira apagada, concluiu que talvez fosse suave e aveludada como o som de um oboé que ainda não fora fabricado; talvez – não tinha certeza disso nem de nada. Ademais, era preciso saber se a fogueira apagada ardia a céu aberto ou em ambiente fechado.
A gente pensa cada maluquice! Pensou Evaristo, sobretudo nessa quarentena em que estamos mergulhados! Ninguém saía de casa naqueles dias, o que para Evaristo não representava um problema – tinha no apartamento uma pequena biblioteca com cerca de três mil títulos, quinhentos deles ainda não-lidos. Mas era um homem preocupado com o coletivo, temia pela sanidade das pessoas enclausuradas.
A redução do fluxo veicular contribuía para a redução da poluição e a natureza agradecia. Mas também aos homens era possível encontrar pontos positivos na atípica situação de clausura que estavam momentaneamente enfrentando. É curioso como, às vezes, um vírus consegue aproximar pais e filhos e incrementar o convívio familiar; é também nos momentos conturbados que as pessoas crescem em humanidade, tornam-se mais solidárias e aprendem a valorizar gestos de amor ao outro.
Evaristo escrevera e publicara alguns livros e, no dia anterior, iniciara um novo texto, logo, tinha com o que se ocupar. Ainda olhando pela janela, lançou uma onda de pensamento positivo endereçada a todas as pessoas do planeta. Resolveu então fazer um filme e afastou-se da janela. Pegou um livro que ainda não lera. Acomodou-se em uma poltrona e iniciou a leitura – ler um livro é mentalmente fazer um filme.
E que todos façam filmes ou criem um próprio método para driblar o marasmo.