O Aquiles dessa história não é filho de Peleu; sua mãe foi e continua sendo uma bela mulher, mas não se chama Tétis e não é uma das Nereidas. O Aquiles dessa história não foi banhado nas águas do rio Estige nem morreu ao ser atingido no calcanhar por uma flecha disparada por Páris e guiada por Apolo. O Aquiles dessa história está vivo.
O pai do Aquiles dessa história batizou o filho com o nome da personagem central da Ilíada por ser estudioso e amante da mitologia grega. Isso posto, passemos à história de nosso Aquiles.
Quando acordou naquela manhã, Aquiles tentou remover o cobertor e notou que algo estranho estava acontecendo: não conseguia segurar com a mesma eficácia de antes. Olhou para as mãos e sentiu um calafrio. Na mão esquerda tinha dois dedos apenas: o mínimo e o polegar.
Um nó na garganta barrou a passagem do grito que por certo acordaria toda a vizinhança. Procurou pelos dedos de maneira atabalhoada, uma busca frenética que não obteve êxito. Depois de vasculhar cuidadosamente a amarfanhada roupa de cama, examinou todo o quarto e nada, três dedos da mão esquerda tinham desaparecido. O caso era um mistério, não havia pistas sobre o sumiço dos dedos e, o mais curioso é que não tinha sequer vestígio de sangue no quarto, nem mesmo uma gota.
Aquiles não sentia nenhuma dor. Respirou fundo e procurou analisar fria e racionalmente a situação. Havia um problema, e todo problema pede uma solução. Não era prudente, naquele momento, alarmar os familiares. Vestiu-se. Saiu do quarto com as mãos no bolso e, ao passar pela sala, comunicou à família que surgira um compromisso urgente e inadiável e não tinha tempo para o café da manhã. Sem dar maiores detalhes, dirigiu-se ao hospital.
Após examinar a mão esquerda de Aquiles, o médico o encarou e disse:
“Não estou entendendo sua inquietação, a julgar pelo aspecto do local, os três dedos ausentes foram amputados há muito tempo, é provável até que tenha nascido com apenas dois dedos na mão esquerda.”
“Não sou maluco”, retrucou Aquiles, “até ontem à noite eu tinha cinco dedos na mão esquerda, doutor.”
“Isso é impossível”, disse o médico, começando a duvidar da sanidade do paciente, “não tem lesão alguma, sua mão esquerda é como uma pinça, senhor Aquiles.”
“Não duvide de minha palavra!”, gritou o paciente.
“Acalme-se”, disse assustado o médico, “vamos resolver seu problema, diga-me: onde estão os três dedos que você perdeu essa manhã?”
“Procurei cuidadosamente, mas não os encontrei em parte alguma.”
“Vou chamar uma equipe especializada, aguarde aqui por alguns minutos.”
O médico saiu. Pouco depois retornou com um grupo de brutamontes que imobilizou o paciente. Posteriormente fizeram contato com a família de Aquiles, este acabou sendo liberado.
Seguiram noites de insônia para Aquiles, o mistério do desaparecimento dos dedos não o deixava dormir. Não conversou com a família nem com ninguém sobre o assunto. Batucava tampos de mesa, mostrando a mão esquerda às pessoas, mas, ninguém tecia comentário algum nem demonstrava surpresa.
O caso era uma incógnita flutuante na cabeça de Aquiles até que, no sétimo dia pela manhã, um fato o intrigou ainda mais. Retornou ao hospital e, triunfante, apresentou ao incrédulo médico a mão esquerda que... Estava com os cinco dedos.
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal