Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Usava camisa preta e máscara branca e estava parado na calçada. Consultou o relógio, como se estivesse atrasado para algum compromisso importante. Finalmente o sinal abriu para a travessia de pedestres. Mas antes de iniciar a caminhada para o outro lado da rua, ouviu a pergunta:
“Você não é o Triplo P?”
Olhou para o lado. Deparou-se com um sujeito de camisa branca e máscara preta.
“Está falando comigo?”, perguntou o da camisa preta.
“Sim, você não é o Triplo P?”, repetiu o da camisa branca.
O da camisa preta parou por um momento. Na adolescência, era chamado pelos colegas pelo cognome Triplo P.
“Quem quer saber?”, perguntou, com ligeira desconfiança, o da máscara branca.
“Eu o reconheci”, respondeu o da máscara preta, “tente me reconhecer também.”
O da máscara branca fez outra pausa. O sinal ficou vermelho para pedestres e os carros ganharam movimento, já que não podia atravessar a rua, tentou se lembrar do outro. Lembrou-se, depois de alguns segundos. O da máscara preta era parecido com o melhor amigo dos tempos de colégio. Não podia ser!
“Não pode ser”, disse, por fim, o da máscara branca, “você é o Duplo M?”
Breve interrupção na história para um esclarecimento. Os apelidos foram criados a partir das iniciais dos nomes.
Duplo M: Márcio Mendes. Triplo P: Paulo Pádua Pinheiro.
“Incrível!”, exclamou Duplo M, “é certo que a pandemia fez diminuir o fluxo de pessoas nas ruas, mas, encontrá-lo assim, de modo casual, no centro de uma metrópole, é surpreendente, não nos víamos a mais de trinta anos, certo?”
“Mais de trinta e seis anos”, disse Triplo P, “estivemos juntos pela última vez no dia 25 de janeiro de 1984, em frente à Praça da Sé, em São Paulo, no Comício Pelas Diretas; trezentas mil pessoas estavam lá pedindo Diretas Já, lembra?”
“Claro”, disse Duplo M, “no início de fevereiro de 1984, fui passar uns dias no litoral nordestino, conheci uma morena estonteante, casei-me com ela e acabei ficando décadas por lá; e quanto a você?”
“A volta da democracia era a pauta daqueles dias, fui para o Rio de Janeiro e, no dia 10 de abril de 1984, participei do encontro na Candelária, onde um milhão de pessoas se reuniu pedindo democracia.”
“E ficou no Rio?”
“Sim, fiquei no Rio, uma história parecida com a sua, conheci uma bela carioca, nos casamos e ficamos morando no Rio por mais de quinze anos, até o divórcio.”
“Também me divorciei, estou no sexto casamento.”
“Sou mais econômico, estou no quinto.”
“Sobre as manifestações políticas, sinto agora que a luta pela democracia foi vã, os eleitores acabaram de eleger um presidente truculento e idiota.”
“Pode parar por aí, não fale mal do meu presidente, ele está moralizando o país.”
“Ele não moralizou nem a casa dele.”
“Nunca mais me dirija a palavra.”
“Ótimo! Quem defende idiota é idiota, e de idiotas eu quero distância.”
Duplo M se afastou. Triplo P já não se lembrava de seu compromisso pendente. Quanto ao narrador, desconhece o destino de ambos. Personagens são como pessoas, possuem vida própria e são incógnitas ambulantes.