Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Ele estava onde sempre esteve, mas não como sempre esteve. Um quadro grande que exibia uma floresta. O quadro continuava no mesmo lugar: na parede sul do lugar. Ninguém sabia quem colocou o quadro na parede, muito menos quem o pintou.
Quando todos os meninos nasceram, o quadro já estava na parede. O menino Centenário - assim chamado por ter mais de cem anos de idade - costuma recordar e passar adiante histórias contadas por seu trisavô. Dizia o menino Centenário em questão que seu trisavô repetia amiúde que quando nascera o quadro já estava na parede.
Em dias de amnésia e descaso para com a História, não existe apreço por árvores genealógicas ou quaisquer outras. Mas, se alguém fugir à regra vigente e mergulhar no passado, constatará que em tempos imemoriais o quadro já estava na parede.
Incertezas pairam sobre todas as gerações do lugar. É certo que não há uma certeza que permita proclamar uma verdade absoluta. Mas é plausível a explicação de que o quadro chegou à parede antes mesmo do surgimento da parede. É que o quadro estava suspenso, então chegaram os moradores do lugar e construíram paredes.
O quadro estava onde sempre esteve, mas não como sempre esteve. É possível perceber uma sutil gradação nas cores da pintura. A floresta do quadro está ficando rala e seu exuberante verde de outrora tem adquirido, paulatinamente, um melancólico tom acinzentado. Esta foi a constatação feita por CF, o Celsinho Fumaça. Os moradores do lugar estavam reunidos na sala quando CF olhou para o quadro, analisou-o demoradamente e disse:
“Está acontecendo algo estranho com o quadro, ele está sendo apagado; vocês estão percebendo a metamorfose?”
Todos ouviram, mas ninguém deu ouvidos às palavras de Celsinho Fumaça. CF tinha o condenável hábito de fumar uns cigarrinhos artesanais, portanto, não era uma pessoa confiável, não merecia nenhum crédito.
Tio Leopoldo foi outro que notou a transformação do quadro. Num quente fim de tarde o tio passava pela sala quando, num movimento involuntário, pousou o olhar no quadro e ficou sobressaltado. Virou-se para os outros moradores do lugar e perguntou:
“O que houve com o quadro?”
Não obteve resposta alguma.
“Olhem com atenção”, continuou o tio, “a floresta praticamente desapareceu!”
Os outros ficaram preocupados com a sanidade de Leopoldo. No fatídico ano de 1968 o tio era um adolescente rebelde; em dezembro daquele ano o governo decretou o famigerado AI-5. Alguns anos depois, Leopoldo foi torturado em uma cela suja do subsolo de algum lugar do lugar. Desde então o tio passou a ver coisas estranhas, como camburões, vultos sinistros e armados e perigos múltiplos esgueirando por toda parte. Tio Leopoldo não podia ser levado a sério, não tinha nenhuma credibilidade.
Ah, também aconteceu com Centenário, numa manhã de domingo ele estava sentado em sua cadeira de balanço quando, de repente, olhou para o quadro e disse:
“O quadro está muito estranho.”
Era dia de eleição e ninguém tinha disponibilidade de tempo. Em bovino cortejo foram às urnas. Na manhã do dia seguinte, quando abriram as janelas para clarear a sala, foram dominados por um terror atroz. Mas era tarde para esboçar qualquer reação. Um tenebroso monstro saltou das cinzas do quadro e devorou a todos.
Não tiveram tempo sequer para descobrir o que acontece quando se joga uma bola de borracha contra um muro.