Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
“Você está um pouco abatido”, disse o Ferreira ao Abel “algum problema?”
“Passei a noite no sofá”, disse o Abel, “não consegui dormir.”
“Só pode ter aprontado alguma!”, observou o Edson.
“Não aprontei nenhuma, vou explicar o que houve”, disse o Abel, “segundo Jung, assim como o corpo humano possui uma anatomia comum, também a psique possui um substrato comum e...”
“Espere um pouco”, atalhou o Ferreira, “quem é Jung?”
“Um psiquiatra suíço, místico e sensível ao universo, decifrador de mandalas e interessado em alquimia.”
“Jung não é aquele que foi amigo do Freud?”, perguntou o Edson.
“O próprio”, respondeu o Abel, “Jung foi discípulo de Freud, tornaram-se amigos até que houve um rompimento entre eles; aproveitei o confinamento provocado pelo vírus para estudar Jung.”
“Sei, mas,,, como é que Jung pode ter alguma culpa pelo fato de você ter passado a noite no sofá?”, perguntou o Ferreira.
“Eu não disse que Jung foi o culpado por eu ter dormido, digo, ter passado a noite no sofá”, disse o Abel, “eu estava começando a explicar quando você me interrompeu.”
Foi então que chegou o Haroldo. Juntou-se ao trio. Pediu uma garrafa e um copo e perguntou:
“Qual é o assunto em pauta?”
“Estávamos falando sobre Jung”, respondeu o Abel.
“E quem é esse Jung?”, perguntou o Haroldo.
“Carl Gustav Jung”, respondeu o Abel, “psiquiatra, conhecedor de sabedorias orientais, tratado por seus seguidores como guru.”
“Parece diabólico”, disse o Haroldo, “tem o perfil do sujeito que vai pro inferno.”
“Jung morreu em 1961”, explicou o Abel.
“Então faço a correção”, disse o Haroldo, “ele não vai, já foi pro inferno.”
“Segundo você todos vão pro inferno”, disse o Ferreira, “filósofos, poetas...”
“Espere aí, eles vão pro inferno porque abriram mão do Espírito Santo e abraçaram as sensações proporcionadas pelas práticas mundanas”, disse o Haroldo, voltou-se para o Edson e perguntou, “o que pensa a respeito?”
“Tenho um lema”, disse o Edson, introspectivo, como que pensando em voz alta, “se o que tem a dizer não é mais precioso que o silêncio, então fique calado.”
“Isso aí é bonito”, disse o Ferreira, “é seu ou está parafraseando alguém?”
“De fato é muito bonito, quem disse isso foi Pitágoras.”
“Pitágoras é outro que está no inferno”, disse o Haroldo.
“Você ia explicar porque passou a noite no sofá”, disse o Edson, “citou Jung e...”
“Esqueci o aniversário de minha sogra e minha esposa não perdoou, acontece que foi no dia 11 de setembro, data preenchida apenas com as lembranças de aeronaves atingindo as torres do World Trade Center, em Nova York, é o que Jung denominava Inconsciente Coletivo, percebem? Esquecer o aniversário não foi minha culpa, foi culpa do Inconsciente Coletivo, mas minha mulher não aceitou o argumento.”
“E quanto ao Haroldo parecer um pastor evangélico com dor de dentes e mandar todo mundo pro inferno, Jung explica?”
“Não, nem Jung e nem Freud explica, mas fico aliviado em saber que o Haroldo não é o encarregado de fazer a lista das almas que irão para o Paraíso.”