Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Gotículas de saudade esparzidas por mãos invisíveis afagam, penetram os poros e provocam uma dor estranha, a um só tempo distante e palpável. Há muita reminiscência no ar onde a ternura flutua.
O menino está sentado na mureta da casa simples e observa as árvores que ladeiam a rua pacata proporcionando sombra e frescor ao lugar, Quase todos os quintais têm árvores frutíferas. No dia anterior, no quintal de dona Iracema, o menino colheu carambolas, fruta que, quando fatiadas, transformam-se em estrelas num céu ao alcance das mãos.
A bola do bilboquê faz vários giros de trezentos e sessenta graus até que, num movimento preciso, o menino faz com que o bastonete se encaixe no furo da bola. Feliz com a manobra de sucesso, o menino sorri. Depois entra na casa, deixa o bilboquê e, de uma caixa de sapatos, retira um álbum de figurinhas.
Após folhear atentamente o álbum, constata que faltam duas figurinhas para preenchê-lo. Verifica que na caixa tem três feixes contendo, cada um deles, centenas de figurinhas presas por elásticos. É domingo, dia de sessão vespertina de cinema, a chamada matinê, ocasião em que os meninos se encontram para trocar figurinhas. Hoje consigo as duas figurinhas que faltam e completo o álbum, pensa o menino. E retorna à mureta.
É cedo ainda. Por cerca de meia hora, o menino fica por ali, vendo senhores e senhoras que passam pela calçada rumo à igreja. Depois vai jogar futebol no campinho improvisado em um terreno baldio. Quatro tijolos formam os gols. Quando o jogo termina, nenhum dos pequenos jogadores sabe dizer ao certo qual foi o placar da partida, o que não faz nenhuma diferença, para eles, o que vale mesmo é a diversão.
Quando o menino chega à sua casa, o sino da igreja avisa que são onze horas. O pequeno toma um banho, almoça e se prepara para ir à matinê. Faltam duas horas e treze minutos para o início do filme. Antes de sair, rodopia pião na varanda.
Na permuta de figurinhas, o menino consegue as duas que faltavam para preencher seu álbum. O dia fora coroado de pleno êxito. Na volta pra casa, senta-se em um banco que fica próximo ao coreto e respira o ar puro na praça da pequena cidade...
E o velho de vestes surradas que valoriza mais o verde da floresta que o verde do dólar, verá quando, voando sem asas, Ele chegará à praça central do mundo, tem idade incerta, justiça nos olhos e essência imaculada. E com uma voz que – graças à acústica da alma e do coração – será ouvida por todos, pronunciará as últimas palavras pronunciadas na Terra:
“É chegada a hora em que os dados param de rolar, a hora em que todos empreenderão a derradeira viagem”, breve pausa, “vocês fizeram a aquisição da passagem com a moeda das ações que praticaram, assim, o destino de cada viajante foi por ele próprio traçado.”
Conheço detalhadamente os eventos ocorridos com o menino, naquele domingo, bem como o que acontecerá na praça central do mundo. Eu fui aquele menino e serei o velho de vestes surradas, caros senhores.
Às vezes penso em mecânica quântica, em partículas subatômicas e na máquina do tempo. Então redireciono o pensamento: a máquina do tempo existe desde que o homem existe, é a cabeça, abastecida com lembranças e imaginação, ela nos faz viajar pro passado e pro futuro.
Fazemos surgir a realidade e a realidade nos faz surgir.