Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O ANALISTA: Mergulhe no passado, localize fatos nos recônditos da memória, fale sobre reminiscências.
O PACIENTE: Vejo um riacho serpenteando na floresta a murmurejar, e logo abaixo, um açude dormindo em cujas águas são refletidas as nuvens que a brisa vespertina molemente faz flutuar lá no alto.
“Bonito quadro”, diz o analista, “agora tente localizar, no tempo, a primeira vez em que ouviu o som da guitarra.”
“Não posso dizer com precisão”, diz o paciente, após refletir por alguns minutos.
“Deixemos de lado a precisão”, continua o analista, “basta uma referência espacial e/ou temporal, ainda que vaga.”
“Tudo são fragmentos”, diz o paciente, “sei que o som do riacho ocorreu na infância; já o som da guitarra, teve início na adolescência.”
“Ótimo! Temos uma referência temporal”, diz o analista, “agora tente recordar de onde saiu o som da guitarra na primeira vez que o ouviu.”
“O som da guitarra saiu, evidentemente, da guitarra.”
“Deixe-me reformular a pergunta: ao produzir o som, onde estava a guitarra?”
“Em algum lugar incerto; eu caminhava por um beco sombrio quando o som atravessou um muro áspero e caiu em minha cabeça, permaneceu durante horas, depois se foi, mas, logo retornou, e desde então sempre retorna, não passa um único dia sem que eu ouça o som da guitarra.”
“Então o som lhe persegue como sua própria sombra?”
“Mais que minha sombra, já que ouço o som da guitarra também na completa escuridão, ou seja, quando não há sombra.”
“E quanto ao ritmo?”
“Varia muito, às vezes ouço um blues estranho que não parece ter caído de nenhuma árvore genealógica blueseira, outras vezes ouço acordes peso-pesado, como se a mão do guitarrista se movesse com a velocidade da luz”, breve pausa, “muitas vezes ouço a guitarra respondendo com notas a um imaginário lamento de um canto blueseiro, depois a guitarra se torna agressiva, pegando o caminho do rock-and-roll.”
“Vai do blues ao rock, então?”
“Sim, já ouvi a guitarra miar, assobiar e uivar com a mesma intensidade, frases pouco ortodoxas em solos alucinados, distorção que lembra instrumento de sopro... às vezes a guitarra soa como sinfonia de apenas um instrumento.”
“Interessante, prossiga.”
“O senhor pode até achar estranho, mas, a guitarra que ouço explora um campo selvagem de texturas e timbres, como se fosse executada por Albert King, Jimi Hendrix, Frank Zappa, David Gilmour ou... sei lá, no fundo sei que a guitarra que ouço é desconhecida e nada contra a correnteza dos ditames populares.”
“Você é, naturalmente, um músico, certo?”
“Não, sou um vendedor de sonhos, até a próxima sessão, doutor.”
O paciente se retira. O analista vai à recepção e diz à secretária:
“Preciso dar uma olhada no histórico do paciente que acaba de sair.”
“Mas... hoje não apareceu nenhum paciente, doutor, apenas um homem esteve na portaria dizendo ser vendedor de sonhos, mas não tinha nas mãos nenhum doce, apenas uma guitarra, então os seguranças o mandaram embora.”
“Preciso de um analista”, disse o analista. E seguiu de volta à sua sala.