Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Damião adentrou a pinacoteca e olhou para o quadro que ficava estrategicamente posicionado na parede frontal à porta de entrada. O quadro tinha uma moldura rutilante em alto relevo e fundo branco, e ali estava há mais de quatro décadas. Irradiava uma misteriosa força que o tornava perene e intrigante. No quadro, apenas uma palavra em letras cheias: DROSOFILÍDEO.
E na pinacoteca, Damião viu – com nitidez - a professora Maria do Carmo sentada à mesa da sala de aula. Maria do Carmo levanta-se e anuncia:
“Vocês farão um trabalho sobre metamorfose de drosófila.”
Outro quadro surge na pinacoteca: Belinha – a garotinha que faz jus ao nome – levanta a mão e, ao consentimento da professora, pergunta:
“O que é metamorfose, professora?”
“O mesmo que alomorfia.”
“E o que é alomorfia?”
“Ah, desculpa, metamorfose é, na definição da Biologia, uma profunda mudança de forma, estrutura e hábito”, responde Maria do Carmo, “a metamorfose é um processo que ocorre com um animal, a borboleta, por exemplo, de uma fase de desenvolvimento para outra, ela sofre uma metamorfose.”
“Ah, sei, e o que é drosófila, professora?”, pergunta Belinha.
“Drosófila é um gênero de insetos dípteros...”
“E o que é díptero, professora?”, continua a pequena Bela.
“Díptero é uma ordem de insetos providos de apenas um par de asas anteriores e balancins que servem para manter o equilíbrio em voo, têm aparelho bucal picador ou sugador, são mutucas, mosquitos e moscas...”
“Professora, Kafka sofreu metamorfose?”, pergunta o Paulinho.
“Que idéia!”, diz a professora, “onde você ouviu isso, Paulinho?”
“Outro dia meu pai disse: A Metamorfose, de Kafka, é intrigante.”
“Não é isso, acontece que Franz Kafka é um escritor tcheco que nasceu em Praga no ano de 1883, e morreu em Viena, na Áustria, em 1924”, explica pacientemente a professora, “ocorre que, em 1915, Kafka escreveu uma célebre novela intitulada A Metamorfose, quando seu pai disse: A Metamorfose, de Kafka, é intrigante, estava se referindo a essa novela, entendeu, Paulinho?”
“Sim, Kafka escreveu uma novela pra televisão, meu pai não explicou direito!”
“Espere um pouco, eu não falei telenovela, eu disse novela, novela é uma narrativa maior que o conto e menor que o romance”, diz a professora, “Kafka morreu antes do surgimento da televisão.”
E Maria do Carmo foi direto ao ponto:
“Estamos saindo do tema, vocês vão providenciar bananas, vão esperar que elas amadureçam, depois elas vão ficar escuras, surgirão pequenos insetos conhecidos como mosquinhas-das-frutas. E vocês vão anotar todas as mudanças que perceberem...”
Damião não se lembrava qual fora a conclusão da experiência, saiu da Pinacoteca da Memória com o firme propósito de revivê-la. Colocou bananas em uma fruteira sobre a mesa da cozinha e, dia após dia, começou a fazer anotações sobre as mudanças ocorridas. Surgiram pequeninas moscas que, cresceram, ficaram do tamanho de libélula, pardal, condor... Até que, numa bela manhã de domingo, Damião acordou com um barulho ensurdecedor. Correu para a cozinha e, olhando pelo buraco onde ficava a janela, ficou atônito. Dragões ameaçadores riscavam o espaço na manhã dominical.