Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Primeiro dia de 2021. Três amigos – Reginaldo, Xavier e Matias – estão tomando cerveja e conversando sobre trivialidades. Entre a oitava e a nona cerveja, o Reginaldo lança uma pergunta no ar:
“Vocês já ouviram a expressão annus horribilis?”
“Vagamente, sei que é uma expressão em latim, que significa: ano horrível”, diz o Matias, “se não sou traído por minha memória, foram palavras proferidas pela rainha Elizabeth II.”
“As palavras foram ditas a um correspondente, e o ano classificado como horrível pela rainha foi 1992”, completou o Xavier, “em sua mensagem de Natal daquele ano, Elizabeth disse: 1992 não é um ano para o qual olho com alegria, sem reservas.”
“Confere”, disse o Reginaldo, “e vocês sabem o que levou Elizabeth a classificar 1992 como um ano horrível?”
“Isso eu não sei”, disse o Matias, “provavelmente algo pequeno, sem nenhuma importância para os súditos.”
“Também não sei”, assumiu o Xavier, “mas o fato é que a realeza costuma supervalorizar qualquer dissabor pessoal, aliás, via de regra, pessoas em geral, acostumadas à vida fácil e farta, tremem diante de qualquer minúsculo contratempo.”
“Elizabeth II classificou 1992 como ano horrível por dois motivos”, retomou o Reginaldo, “primeiro: quatro dias antes, ocorrera um incêndio no castelo de Windsor e muitas obras de arte foram destruídas; segundo e principal motivo: três dos quatro filhos da rainha pediram divórcio ou separação.”
“O que reforça o que eu disse”, declarou o Matias, “são motivos fúteis que dizem respeito apenas à família real e que em nada interferem na vida dos súditos.”
“Se 1992 foi um ano horrível”, disse o Xavier, “qual seria a classificação apropriada para 2020?”
“O Pantanal ardeu em chamas em 2020”, disse o Reginaldo, “e o Pantanal é uma obra de arte da natureza; ou se preferirem, uma obra de Deus infinitamente mais valiosa que todas as obras de arte do castelo de Windsor, os senhores concordam?”
“Concordo inteiramente”, disse o Matias, “mas, provavelmente Elizabeth discorda, já que ela está muito distante do Pantanal.”
“Sua afirmação”, disse o Xavier, “leva-me a pensar que, de fato, as pessoas têm dificuldade em fazer análise coletiva, a preocupação costuma ser restrita ao pequeno mundo individual e ao que em torno dele gravita, lamentável!”
“É verdade”, concordou o Reginaldo, “mas a pandemia está fazendo com que as pessoas fiquem mais solidárias e lancem um olhar pro coletivo.”
“Minha percepção não é bem essa”, discordou o Matias, e justificou, “ao que me parece, a tragédia só é admitida por quem por ela é tocado.”
O Xavier respirou fundo e saiu das trivialidades:
“Nossos desejos e sonhos sinceros caem no espaço, criam ondulações e viajam pelo tempo, encontram outros sonhos e desejos, e acabam se realizando”, fez uma pausa carregada de reflexão e arrematou, “Deus sabe criar a ordema a partir do caos.”
“Tem razão”, disse o Reginaldo, “é preciso almejar um ano novo auspicioso e contribuir para que a mudança de 2020 para 2021 não seja mera mudança de calendário, a construção de um mundo melhor passa pela reforma íntima individual.”
“O futuro está sendo escrito no presente”, disseram uníssonos.
E levantaram um brinde ao Novo Ano.