Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O divisor de águas – e pode-se acrescentar de terra, fogo e ar –, ocorreu quando viu o papel jogado em uma rua sombria. Urbano ia apanhar o papel amassado pelas mazelas e amarelecido pelo tempo quando, inesperadamente, forte e ruidosa ventania tomou conta do lugar. O papel que para longe voou acendeu em Urbano uma fremente chama interior, pondo à luz um desejo já existente, mas que até então permanecera adormecido e opaco. Urbano experimentou uma nova sensação, uma vontade que ia além da meta de conhecer sua realidade física, psíquica e moral. Foi sacudido pela imperiosa necessidade de conhecer Deus.
Outrora teria ido a Delfos, procuraria a pitonisa. Porém, na impossibilidade de proceder tal incursão, consultou outro sábio Oráculo.
“Aqui estou”, disse Urbano, “para solicitar conhecimento acerca de Deus.”
“Alguns homens captam o espírito das coisas; outros captam coisas do espírito; entretanto, a maioria esmagadora dos homens sai para comprar cigarros e bebidas e nunca mais retorna”, disse o Oráculo, “a qual dessas categorias você pertence?”
“Nenhuma das três, eu acho”, respondeu Urbano.
“Minha pergunta foi protocolar, eu já sabia qual seria sua resposta.”
“Não faz sentido perguntar algo cuja resposta já se tem”, disse Urbano.
“O sentido foi dar a você a oportunidade de ser verdadeiro”, disse o Oráculo, “você demonstrou sinceridade, por outro lado, ficou evidente que está perdido num redemoinho de confusões, como a maioria dos homens.”
“Como sabe tudo isso?”
“Sou o Oráculo, meu ofício é saber.”
“Noutro dia vi na rua um papel amassado e desbotado”, retomou Urbano, “sinto que aquele papel tem a resposta que procuro, mas o vento o levou para lugar incerto, de modo que, minha procura por Deus continua, repito: por isso estou aqui.”
“Deus não é uma procura, é um encontro.”
“Mas... como é que vou encontrar sem procurar?”
“Eis aí uma conclusão meramente retórica, entenda que o encontro com Deus está na aceitação e não na procura.”
“Continuo confuso, como aceitar o que ainda não encontrei?”
“Deus é onipresente, Ele está em toda parte, não é preciso procurar o que está em todos os lugares, se você ainda não O encontrou é porque ainda não O aceitou.”
“Deus é um insondável mistério”, disse Urbano, coçando a cabeça.
“Mistério!”, exclamou o Oráculo, “tentar monopolizar Deus é fazer com que Ele escoe como água por entre os dedos, os líderes religiosos, os teólogos, os estudiosos de textos de escatologia e afins, são justamente as categorias de homens mais carentes de Deus”, fez uma pausa para Urbano melhor assimilar suas palavras, então continuou, “quanto mais o homem aprende sobre mistérios, mais vazio de mistérios e cheio de arrogância ele fica, e a arrogância gera o engano e faz com que pequenos se julguem grandes; já os humildes, ainda que gigantescos, julgam-se pequenos.”
“Se ao menos eu conseguisse localizar o papel que o vento levou!”, disse Urbano, quase que numa súplica.
Então o vento soprou e o papel ao qual se referia veio aninhar-se a seus pés. Tomado pela emoção, Urbano apanhou o papel amarrotado, desdobrou-o cuidadosamente, lançou-lhe um olhar e, depois de algum tempo, disse, desolado:
“Mas... não tem nenhuma inteligibilidade, são garatujas indecifráveis!...”