Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O editor é um homem cuja idade está em algum ponto entre os sessenta e os setenta. Usa um terno sóbrio e uma indefectível e cara gravata. Lança um olhar perscrutador ao homem que está do outro lado da mesa e diz:
“Terminei a leitura do original de seu livro e, devo admitir que, fiquei muitíssimo impressionado.”
O homem que está do outro lado da mesa é o autor. Tem a aparência despojada de intelectual visionário - desprovida de quaisquer enfeites.
“Positiva ou negativamente impressionado?”, pergunta o autor.
“Positivamente impressionado, seu livro é, ao mesmo tempo, suave e lírico, realista e áspero; um lirismo que afaga a alma e uma aspereza que tira da zona de conforto; sem dizer que é carregado de senso crítico inteligente que conduz o leitor à reflexão”, diz o editor, “há muito não me deparava com textos elaborados com tanto refinamento, além de ricos em forma e conteúdo.”
“Discordo, é apenas uma coletânea de textos que elaborei ao longo de uma década”, diz o autor, “diria que, trata-se de um conjunto de escritos despretensiosos.”
“Não seja modesto!”, exclama o editor, “os textos de seu livro abordam o lirismo, o realismo fantástico, o gênero policial... no entanto, a temática variada forma uma multiplicidade harmoniosa e entrelaçada por um inexplicável fio psicológico, quer dizer, é um livro com vários textos que, isoladamente têm vida própria, mas que, por alguma razão, pertencem à mesma família; são textos que tinham mesmo de estar juntos, logo, não tem aparência de mosaico.”
“Não, o livro não é tão bom assim.”
“É extraordinário, ele coloca o leitor num labirinto de onde não há saída possível, sem falar na maestria com que tece crítica social e aponta mazelas cotidianas...”
“Espere um pouco”, atalha o autor, “há um exagero em suas considerações, meu livro não é tudo isso!”
“O quê? É tudo isso e muito mais, você, como ninguém, sabe usar a literatura como arma de combate, e faz isso como um mestre, um verdadeiro mago da palavra.”
“O que é isso! São textos triviais, eles não têm nada de extraordinário.”
“Você disse textos triviais? Só pode estar brincando! Seus textos são verdadeiras pérolas, muitos deles, em determinados momentos, jogam luz sobre as deformidades que a consciência ainda não conseguiu captar, atirando até mesmo o leitor mais atento dentro de um liquidificador ligado; afirmo convictamente: seu livro não é trivial, ele não tem nada de lugar-comum, é simplesmente magnífico.”
“Sua avaliação está equivocada, meu livro é, no máximo, razoável.”
“Sou do ramo, por força de ofício e por prazer, já li, entre contemporâneos e clássicos, milhares de livros, e posso assegurar que, seu trabalho tem um engajamento raro e uma criatividade genial.”
“Está enganado, meu livro não chega nem a razoável, ele é péssimo.”
“É uma obra-prima, é sensacional a maneira como você descreve o cruel processo de retroalimentação que faz com que grotescos e caricatos homenzinhos de isopor cheguem ao poder pela via do voto popular graças à promoção sistemática e intensiva do processo de esvaziamento intelectual dos cidadãos...”
“Está bem, está bem, você venceu, o livro é excelente.”
“Sim, e é por isso que não podemos editá-lo”, disse o editor, “os leitores não iriam entender; traga-me textos de baixa qualidade, ou seja, publicáveis!...”