Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Segunda-feira: Carlos estava no centro da metrópole quando ouviu a canção pela primeira vez. Achou muito estranho ouvir aquela música suave do lugar em que estava, pois o centro da metrópole era um caos que o colocava na condição de um homem cercado de insano burburinho por todos os lados - uma ilha a caminho da neurose.
A metrópole derramava seu barulho irritante, ensurdecedor e enlouquecedor por toda parte, como impiedosa saraivada de decibéis. Mas, Carlos ouvia apenas o som encantador; não lhe chegava ao ouvido nenhum barulho de sirene ou de buzina ou de freada brusca ou... Nada, apenas o som carregado de encanto da música misteriosa.
O som encantado e misterioso permaneceu por meia hora, depois desapareceu. E então todos os sons enervantes retornaram.
E o fenômeno da canção encantada se repetiu no dia seguinte. E como no dia anterior, abafou todos os outros sons antes de desaparecer como que num passe de mágica. A única diferença foi que, no segundo dia, a canção permaneceu um pouco mais em Carlos – por uma hora.
Era preciso chegar ao ponto de partida daquela bela e doce canção, concluiu Carlos, era preciso, impreterível, imperioso, inevitável até. A canção o atraía como um poderoso imã, com um inexplicável poder hipnótico.
Mas, para onde ir? A canção estava – ao mesmo tempo – próximo e distante. Melhor esperar até o dia seguinte, havia a possibilidade de a canção não voltar, de desaparecer inopinadamente, tal como surgira. E Carlos esperou. Entretanto, no terceiro dia a canção reapareceu; e mais, permaneceu por duas horas antes de desaparecer. E no quarto dia...
No quarto dia a canção retornou. A mesma canção suave dos dias anteriores. E no quarto dia a canção ficou em Carlos durante quatro horas.
E no quinto dia, a canção regressou. E era sempre a mesma canção suave e encantadora. E desta feita se fez ouvir por oito horas.
Então chegou o sábado. E o sábado foi o sexto dia em que a canção retornou. Retornou e ficou por dezesseis horas soando no ouvido de Carlos. E assim que a canção se foi, o homem percebeu que o fenômeno acontecia em progressão geométrica. Carlos já não tinha dúvidas, a canção iria retornar e permanecer durante trinta e duas horas; e foi o que aconteceu depois de um intervalo de oito horas. E surgiu um intervalo de sete horas e cinquenta e nove minutos, seguido por sessenta e quatro horas de música suave e doce. Depois de um intervalo de sete horas e cinquenta e oito minutos, seguiu-se uma sequência de duzentas e cinquenta e seis horas de suave canção e... Não havia mesmo nenhuma dúvida, a vida iria, inexoravelmente, transformar-se em um concerto ininterrupto. Maravilhoso, mas ininterrupto.
Afinal, de onde estaria partindo aquela magnífica canção? Ela flutuava no ar, é claro, mas qual era o ponto de partida? Era preciso obter a resposta.
Após um intervalo de sete horas e quarenta e três minutos, teve início outro concerto, foi então que Carlos saiu para procurar o ponto de partida da canção. Guiado pela canção, percorreu milhares de quilômetros até chegar a uma praia deserta.
Em pé, na areia morna, viu a ilhota de onde era emitido o som. Adentrou o mar e caminhou na direção da ilhota. Com água à altura do peito, Carlos viu, sobre a pequena ilha, um rabo convidativo oscilando sedutora e graciosamente ao sol. Sorriu e, resoluto, seguiu em direção à sereia até desaparecer na imensidão de água salgada... Cantarolando: “É doce morrer no mar...”