A coluna de hoje é sobre uma verdadeira obra cinematográfica que, se o leitor ainda não assistiu, com certeza já ouviu falar: A famosa trilogia de O Poderoso Chefão (The Godfather). Os filmes apresentam a história da mafiosa família dos Corleone à frente de um grupo de gângsteres atuantes em Nova Iorque, liderados por Don Vito Corleone, o Capo dei capi ou, como ficou conhecido, o Padrinho (Il Padrino), interpretado e temperado por Marlon Brando.
O enredo impressiona e desperta no telespectador os sentimentos mais contrapostos. Por um lado, a agressividade e a frieza com que os crimes são praticados pela máfia chocam: são roubos, contrabandos, agressões, tráfico de influências e corrupção, além de muitos homicídios. Por outro, a perspicácia de Don Vito Corleone, e mais tarde de seu filho Michael Corleone, no comando da organização criminosa, incitam nossa deferência e quase que uma torcida pelo êxito de suas atividades ilegais.
Apesar de seus inúmeros crimes, Il Padrino age com bondade e compaixão, concedendo empregos a seus fiéis afilhados e amigos, além de ser leal e amoroso com sua família. No segundo filme, ainda somos confrontados com uma retomada da infância sofrida do personagem até sua chegada à criminalidade. Esses valores, mesmo carreados com violência, são ainda mais evidentes em Michael, que inicialmente reprochava as atividades criminosas da família. No decorrer da trama, o enredo justifica o seu envolvimento com o crime como se fosse o cumprimento de um nobre e honroso dever de defesa da família, quando demonstra então ser um líder habilidoso e um estrategista nato.
Todos esses aspectos fazem com que os dois personagens, apesar de nada carismáticos, tornem-se queridos e idealizados pelo público. Na vida real, contudo, o crime organizado não é tão romantizado assim.
O delito de organização criminosa, previsto na Lei 12.850/2013, é possivelmente o inimigo número um do direito penal contemporâneo. O desenvolvimento de novas tecnologias e os impactos da globalização e da internet foram responsáveis por alçar o crime organizado a um patamar quase que incontrolável, pelo menos aos instrumentos de persecução penal tradicionais.
O que exatamente o caracteriza? Na ordem jurídica brasileira falamos de uma associação de pelo menos quatro pessoas, com divisão de tarefas entre elas e que se volta à prática de outras infrações penais, visando à obtenção de vantagens.
Os impactos dessa nova face da organização criminosa são diversos. Atenta não só contra a segurança pública e a individual, mas também contra a distribuição de renda, a igualdade do comércio e a qualidade dos produtos.
Reconhecendo a transnacionalidade e gravidade desse problema, nações de todo o mundo se viram obrigadas a adotar estratégias globais, com a criação de leis específicas, cooperação internacional, aprimoramento dos serviços e fiscalização da máquina pública, criando novos instrumentos penais e processuais-penais, alguns de aplicabilidade discutível.
Ao mesmo tempo em que é legítimo e necessário pensar-se em estratégias que sejam capazes de enfrentar essa nova forma de criminalidade, o tratamento que se tem dado ao crime organizado acaba por conferir ao direito penal contemporâneo uma nova e questionável roupagem, que por vezes tem flexibilizado garantias penais irrenunciáveis. Encontrar soluções que respeitem o equilíbrio eficácia x legitimidade, é o desafio da legislatura e da dogmática penal.
Diante disso, a conclusão que se tira, novamente, é que o crime organizado da vida real não é tão parecido, ao menos no glamour, com o retratado da trilogia. Até ali, o que se vê é uma criminalidade verdadeiramente deletéria para a sociedade. No mundo em que vivemos, no entanto, nossa torcida se volta ao enfrentamento dessa forma de criminalidade, com medidas eficazes que não signifiquem abrir mão, na mesma medida, de um direito penal justo e democrático que coloque os freios devidos ao poder punitivo estatal.