Os comentários da semana passada ao filme russo Leviatã despertaram a curiosidade de muitos leitores a assistirem ao filme, o que nos é de grande satisfação por um lado, mas de grande preocupação por outro. Se o relato de abusos do poder local trazidos pela película nos soou familiar, devemos ficar atentos do porquê isso estar ocorrendo.
Alguns me perguntaram: o que fazer com um Estado (com letra maiúscula significa todo o poder público, dos três poderes, do local ao nacional) que parece “quebrar nossas pernas para nos oferecer muletas?”; que parece criar dificuldades para que nos ofereça ajuda e assim nos tornemos dependentes?
Indiquei que a resposta legal é a que já estava no take 11: recorrer ao Poder Judiciário, que está à espreita, para o caso do poder mais atuante, o Poder Executivo, extrapolar de suas atribuições e competências. Mas, e se o Poder Judiciário, por meio de seus juízes, nos diferentes níveis, além de não ser justo, nem tentar sê-lo?
Aí uma resposta possível, cinematograficamente, é o filme comentado de hoje, que já citei en passant outras vezes: Michael Kohlhaas é um filme franco-alemão de 2013, dirigido por Arnaud des Pallières e estrelado por Mads Mikkelsen.
Trata-se de uma adaptação para o cinema de uma novela homônima do escritor prussiano Heinrich von Kleist do início do século XIX (1810), que muito influenciaria Kafka quase um século adiante.
Para Kohlhaas, os governantes do embrião de Estado do século XVI, localizado onde viria a ser França e Alemanha, teriam se apartado da justiça e do bem coletivo, tisnando sua honra, passando a buscá-los por suas próprias mãos.
Um dos tradutores da obra, Marcelo Backes, do qual já participei de alguns cursos, resume: “a novela é fundamentada em alguns binômios centrais, que sedimentam grandes embates filosóficos. De um lado, o ideal subjetivo, do outro a realidade mundana; de um lado a liberdade individual, do outro a opressão governamental; de um lado o povo, de outro a nobreza; de um lado a missão social de um Estado nascituro, do outro o abuso de poder perpetrado por seus representantes. Direito e justiça se digladiam na arena da impotência”.
Este comerciante de cavalos, ao tentar atravessar um condado para entregar seus cavalos (à época ainda não havia um país constituído e centralizado), se vê detido de maneira surpreendente pelo imposto de passagem estipulado pelo governante local, que exige que só ele passe, ficando seus 2 cavalos e seu ajudante, sob a promessa de que cuidaria dos animais e os devolveria como os pegou.
O conde não cumpre sua promessa, maltrata os cavalos e quase os mata de trabalhar. Kohlhaas então começa a buscar reparação, sem sucesso, por meio de recursos a órgãos superiores de julgamento. Nesta faina, até mesmo sua mulher é morta. Então, Michael reúne um grupo de bandoleiros a buscarem a justiça negada pelo Estado e começam a espalhar terror, caçando o conde, incendiando aldeias progressivamente, até que ele apareça. Torna-se um sedicioso: “aquele que se revolta contra a autoridade ou a ordem instituída”.
Algo de óbvio e interessante da atuação da figura dos sediciosos, que não está apenas na novela de Kleist, mas em qualquer manifestação social acalorada por mudanças: ela será sempre ilegal. Como assim? As leis normalmente buscam manter inalterado o estado de coisas de quando foram criadas, ou seja, se a sociedade evoluiu e quer mudanças, possivelmente, uma manifestação social que peça essas mudanças, será ilegal e em desfavor dos poderes constituídos momentâneos. O argumento de que determinado levante, como ocorreu em 2013 no Brasil, é ilegal não é sequer mera obviedade retórica.
Para encerrar, oxalá que em nossas buscas por mudanças sociais não nos ocorram dois destinos: 1. o de Kohlhaas e 2. “algo deve mudar para que tudo continue como está” (O Leopardo - Lampedusa).