Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Após contrair Covid-19, Evaristo Capela foi submetido a uma estada forçada de um mês e meio num leito hospitalar. Assim que recebeu alta, foi contatado por vários veículos de comunicação. Inúmeros jornalistas manifestaram o sincero desejo de entrevistá-lo.
Quem iniciou a leitura desse texto, provavelmente não entendeu o motivo de tamanho interesse da imprensa, já que, todos os dias, grande número de pacientes acometidos pela doença em questão recebe alta hospitalar. Ocorre que Evaristo Capela completou cento e nove anos de vida três dias antes de deixar o hospital.
O velho Evaristo, homem à moda antiga, reservado, discreto e reto, relutou em conceder entrevistas, mas, graças a inúmeros apelos de familiares, acabou cedendo.
Ficou acordado entre a família Capela e a imprensa, que as entrevistas seriam realizadas na residência de Evaristo. Uma equipe de jornal foi a primeira a aparecer. O velho patriarca aguardava em seu escritório, sentado atrás de uma antiga escrivaninha de mogno.
Depois que os punhos cerrados se tocaram – no clássico cumprimento do período pandêmico -, Evaristo depositou um baú sobre a mesa, do baú retirou um jornal que exibia a seguinte manchete: Em todas as ruas, e a todas as horas, vemos cair subitamente, tombar sobre a calçada victimas do mal estranho.
“De fato muita gente está morrendo”, disse um dos jornalistas, “mas todos estão recebendo atendimento médico, o SUS está funcionando muito bem, ah, a letra c na palavra vítimas não faz o menor sentido, trata-se de um flagrante erro de grafia.”
“Faça-me um favor”, disse o Evaristo, “verifique o nome do jornal, bem como a data, por gentileza.”
O jornalista pegou o jornal, olhou-o mais detidamente e disse:
“Vejamos... Rio Jornal, Rio de Janeiro, 14 de outubro de 1918... Espere um pouco, este jornal tem mais de cem anos!”
“Exatamente, e o mal estranho a que se refere é a Gripe Espanhola”, disse Evaristo, “quanto à grafia da palavra víctimas, com c, não está errada, está correta para a época, quando esta edição circulou, eu estava com seis anos de idade.”
“O senhor é a história viva, ainda criança, sobreviveu à Gripe Espanhola!”
“Sim, e sobrevivi às duas Guerras Mundiais e outras loucuras mais, mas é bom deixar claro: tudo foi Graças à Deus.”
“No tempo da Gripe Espanhola tudo era mais complicado”, pontuou o jornalista, “não desfrutávamos de todo o avanço científico-tecnológico que hoje temos.”
“Por outro lado, não tínhamos Jair Bolsonaro”, disse Evaristo, “todo momento histórico tem seus prós e contras, meu caro.”
“A direção do Jornal sugeriu junto às autoridades”, disse o jornalista, “o senhor vai ser homenageado, receberá medalha em sessão solene da Câmara.”
“Sempre achei essa história de entrega de medalha uma grande bobagem”, disse o Evaristo, “mas vamos fazer o seguinte, aceitarei a homenagem depois que o Bolsonaro passar a faixa presidencial, certo? Aliás, todos os que sobreviverem ao Bolsonaro farão jus a medalhas, e que fique claro, minhas ressalvas não são ao Jair, mas ao presidente.”
“O senhor Evaristo Capela é literalmente das antigas”, disse alguém da equipe quando deixaram a casa.
“Evaristo pertence a uma cepa em extinção”, disse o jornalista, “Evaristo é um homem, verdadeiramente, um homem, no sentido mais nobre do termo.”
Antonio Rocha Bonfim é romancista, contista, poeta, compositor, letrista, intérprete e colunista deste jornal