Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Lançou um olhar de esguelha ao presente. E o presente em questão não era revestido pela literalidade que confere à palavra o primeiro sentido que ela desperta. Em outros termos, o presente para o qual lançou um olhar de obliquidade não era algo embalado em papel colorido que lhe fora entregue ou que entregaria a alguém, mas um tempo carregado por uma avalanche de eventos a viajar nas asas de um albatroz.
As boas práticas passavam por inegável esvaecimento – o presente do presente era cruel e melancólico. Não gostava do som do presente, tampouco do silêncio. Este era impregnado de tensão; aquele, imbuído de tolas superficialidades. As pessoas ostentavam beligerantes comportamentos, como se a única maneira de solucionar incompatibilidades fosse a violência.
Tornou-se imperioso decretar o armistício das almas, pensou, e começaria pela alma mais próxima, a dele próprio. Para tanto, bastava pegar carona nas asas do albatroz que carregava o tempo e escapar do presente. Deixar-se levar, leve e flutuante...
Viu um livro passando de mãos em mãos entre crianças reunidas. Um livro com fartas ilustrações e poucas palavras. Reconheceu-se entre as crianças. Já sabia ler naquela época; bem verdade que apenas palavras pequenas, mas sabia. E como é de conhecimento público, amor é uma palavra pequena; pequena, porém grandiosa, como Deus. Palavras maiores, como cineangiocardiografia aprendeu tempos depois, quando o coração implodiu de amor.
Estava mergulhado em um flashback, ou seja, visitando recordações. Além de reconhecer-se no grupo de crianças que manuseava o livro, reconheceu também Ana Maria, a doce e encantadora Aninha - menininha de cabelos cacheados.
Saudade é um substantivo abstrato. E para muitos puristas da língua, substantivos abstratos não devem ser usados no plural. Discordou. A saudade que sentia era plural, maiúscula: SAUDADES!
Das aventuras iniciais pelo universo das palavras, recordou duas cartas. A primeira carta de amor que escreveu foi endereçada à professora Dolores – uma carta que não teve coragem de entregar. Ele estava com seis anos de idade; ela, com vinte e cinco. Na época, a diferença de idade era, de fato, um empecilho, entretanto, catorze anos depois, ele estaria com vinte e ela com trinta e nove, portanto, a questão da idade não seria um impedimento. O fato é que, terminado o ano letivo, nunca mais viu a professora. O encontro com Dolores ocorreu num momento impróprio.
A segunda carta de amor que escreveu foi endereçada a Ana Maria. Esta carta, ele entregou. Ah, Aninha! A primeira namoradinha. Dolores e Aninha não sabem, mas, ambas estão eternizadas em doces recordações...
Viu uma rua tranquila ladeada por árvores onde pássaros se reuniam. Uma rua com pouco movimento, onde era possível ouvir até mesmo o farfalhar das folhas das árvores dançando a canção do vento. Havia ar puro nos espaços de outrora.
Na parede das reminiscências, o quadro da rua tranquila e arborizada deu lugar a uma escada em caracol que levava a um ponto incerto de um lugar impreciso.
Passeou ainda por algum tempo entre retalhos de recordações, revisitando fragmentos que confirmavam a existência de um tempo bom e cordial.
Sentiu um incômodo de poluição na garganta, nas narinas, nos olhos... Foi então que retornou ao presente – caminhando sem o compromisso de chegar a algum lugar específico. De repente, deparou-se com um presente do presente: Um ipê florido. Sorriu comovido. E voltou a mergulhar na beleza...