Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Com a pontualidade de um relógio suíço, o chilreio dos pássaros iniciou a saudação ao domingo. Uma claridade natural e sutil começou a entrar na biblioteca onde Euclides Ávila, ainda de pijama, encontrava-se sentado em uma confortável poltrona. O outro homem do recinto, um senhor alto, de bigode e cavanhaque, que trajava uma túnica, disse com voz austera:
“O perigo está à espreita.”
“Como é?”, indagou Euclides Ávila, colhido pela surpresa.
“Eu disse que o perigo está à espreita”, repetiu o homem alto – o de bigode e cavanhaque.
“Por que está me dizendo isso?”, perguntou Euclides com um semblante de preocupação.
“Acalme-se, não estou fazendo uma ameaça, mas uma advertência”, disse o homem da túnica, “o senhor precisa saber que, a qualquer momento, digamos... agora mesmo, um projétil de fuzil pode estilhaçar a vidraça e atingi-lo no peito ou na cabeça.”
“Ah, sim, estou começando a entender, você só está tentando entabular uma conversa, certo?”
“Não se trata disso, eu poderia muito bem ter permanecido em silêncio.”
“Mas, essa história da bala de fuzil me atingindo... isso é uma loucura!”
“Não, não é uma loucura, é uma possibilidade, diga-me, se não existissem fuzis, qual seria a chance de o senhor ser atingido por uma bala de fuzil?”
“Zero, nenhuma chance, naturalmente.”
“Certo, mas, o fato é que os fuzis existem, logo, a chance de o senhor ser atingido pela bala de uma dessas armas, também existe.”
“Sim, mas a chance é tão pequena que...”
“Sejamos francos, a chance de o senhor ser atingido por uma bala de fuzil não só existe como está crescendo dia após dia.”
“Como é que é? Crescendo? Baseado em que você faz essa afirmação?”
“É simples, quanto maior for o número de fuzis em circulação, maior será a probabilidade de que a bala de um deles o atinja, trata-se de uma grandeza diretamente proporcional, meu caro senhor.”
“Não discordo, mas... isso é mera retórica...”
“Como eu disse anteriormente, estou apenas fazendo uma advertência.”
“Mas... como é possível você fazer uma advertência a mim? Você nem existe!”
“Então o senhor está com sérios problemas.”
“Que tipo de problemas?”
“Está dialogando com alguém que acredita não existir, acha isso normal?”
“Bem, acho que me expressei mal, queria dizer que...”
“O senhor ainda não entendeu, reflita sobre o Evangelho de Marcos 13,33: Estai de sobreaviso, vigiai e orai; porque não sabeis quando será o tempo.”
“Mas... Queria dizer que você não existe, pelo menos não como eu existo.”
“Sim, mas quando fechar o livro, eu vou dormir placidamente, já o senhor, seguirá abraçado a suas pequeninas e efêmeras aspirações cotidianas.”
Então um silêncio profundo invadiu a biblioteca. Euclides Ávila voltou à leitura do livro que tinha nas mãos. Decorridos cerca de noventa minutos, chegou ao final da leitura e fechou o livro. O homem da túnica foi repousar entre as páginas. Ávila ficou só com suas inquietações até ser sacudido pelo barulho de vidros estilhaçados. Mais nada.