Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Pela manhã, o Ministério da Beligerância e do Ódio realizou a distribuição de armas e farta munição à população. No período vespertino, uma escuridão flutuante de uns duzentos metros de diâmetro passeou por toda a cidade, era uma nuvem de insetos. Mas, não foi necessário olhar pro alto para saber que a nuvem era de insetos, desde que os inseticidas tornaram-se – devido ao uso indiscriminado e a mutação dos insetos – ineficazes, o fenômeno ocorria diariamente. O Ministério de Combate aos Insetos prometia, há décadas, um inseticida de última geração que solucionaria o problema; ao povo, restava ter paciência e esperar. De modo que, como atestam os acontecimentos acima descritos, a manhã e a tarde transcorreram dentro da normalidade vigente.
E chegou a noite. E os homens, manipulando a própria consciência, imaginaram som de águas plácidas, convenceram-se de que tudo estava bem e – exceto os insones, é claro – adormeceram. Então veio a aurora, e o primeiro homem a chegar na praça, assustou-se com o que encontrou, correu à catedral e badalou o sino. Pouco depois, todos os moradores do lugar estavam na praça, olhando, atônitos, para a novidade.
“Mas... o que é isso?”, alguém perguntou.
“É um monumento em forma de obelisco”, respondeu um professor que estava por ali, “veja, tem muitos nomes inscritos, provavelmente de pessoas ilustres que estão sendo homenageadas.”
“Não é possível!”, exclamou um dos poderosos do lugar, aproximando-se da lista de nomes do obelisco, “deve haver algum engano, aqui está o nome do Zé Maltrapilho, aquele mendigo encarquilhado que vive perambulando pelas ruas, atrapalhando o trânsito e tirando o sossego público.”
“O nome do Zé Esfomeado, aquele outro mendigo que vive atrapalhando a ordem pública, pedindo pão de porta em porta, também está na relação, quem elaborou essa lista de nomes deve ser um louco”, disse outro senhor ilustre, “isso é um acinte!”
“Aqui está outro nome indigno de receber homenagens: Zé do Choro”, observou outro senhor ilustre, “Zé do choro, como o nome denuncia, é aquele mendigo que vive a chorar, causa tanto incômodo que é preciso enxotá-lo dos lugares.”
E os homens ilustres e poderosos ficaram furiosos, pois o obelisco tinha apenas nomes de mendigos e indigentes.
“Espere um pouco”, disse o professor, “aqui tem uma inscrição antecedendo os nomes, está escrito: Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus. Bem-aventurados vós, os que agora tendes fome, porque sereis fartos. Bem-aventurados vós, os que agora chorais, porque haveis de rir.”
“E segue”, continuou o professor, “também está escrito: Mas ai de vós, os ricos! Porque tendes a vossa consolação. Ai de vós, os que estais agora fartos! Porque vireis a ter fome. Ai de vós, os que agora rides! Porque haveis de lamentar e chorar. Ai de vós, quando todos os louvarem! Porque assim procederam seus pais com os falsos profetas”, fez ligeira pausa e prosseguiu, “e termina com uma observação; Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros.”
“Esses aí são preceitos antiquados”, disseram alguns líderes religiosos, “os mandamentos de agora são dois: a chegada ao poder, e a manutenção do poder.”
E a multidão dispersou sem sequer cogitar quem edificara o obelisco. E a próxima escuridão não seria causada pela nuvem de insetos, mas pelo escurecer do sol e a ausência da claridade da lua num momento derradeiro e crucial...