Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Melissa sempre fez declarações inusitadas. De seus lábios ouvi palavras surpreendentes. Nos dias que correm, todos – ou quase todos – têm o mesmo discurso, até os mesmos vícios de linguagem. As pessoas bebem na mesma fonte e compartilham os mesmos argumentos. Melissa, não, ela demonstrava originalidade.
“O GPS é uma invenção ruim”, disse-me Melissa, em um princípio de abril, “antes dele, as pessoas podiam se perder nos labirintos do viver e, tateando no ir e vir, sempre havia a possibilidade de, ainda que involuntariamente, chegar ao paraíso; depois do GPS, ninguém mais se perde, ainda que, paradoxalmente, todos estejam perdidos.”
Noutra ocasião, em fins de setembro, passeávamos no campo entre flores silvestres quando Melissa olhou ternamente para uma flor e disse:
“Floresta começa com flor.”
Estávamos no sopé de um monte. Ela ficou calada e eu não disse nada. Colhi uma flor e a prendi em seus cabelos. Depois fiquei ouvindo as maravilhas ditas dentro do silêncio mágico do momento. E silenciosos retornamos à aldeia.
Mais tarde, deitados na relva, olhávamos para as estrelas.
“Sinto, às vezes, que aquele sonho de amor e paz está morrendo”, eu disse.
“Embora a fala pareça lugar-comum”, ela disse, “os sonhos não morrem.”
Melissa pegou o violão e cantou Imagine, do Lennon. Quando chegou ao final da canção, deixou de lado o violão e disse:
“Muitos estão sonhando conosco o mesmo sonho de amor e paz, ocorre que os bons são silenciosos, comedidos; já os maus fazem estardalhaço, são espalhafatosos. Desde sempre os poetas incomodam e causam desconforto aos bárbaros, no entanto, a poesia continua existindo, pairando indelével sobre a barbárie.”
No dia anterior, Melissa tinha recebido uma carta dos pais. O caráter pacifista, Melissa herdara deles, que se conheceram em Woodstock, mais precisamente, no segundo dia do festival – 16 de agosto de 1969. Mas, Melissa só nasceu dez anos depois, após os pais correrem o mundo como mochileiros. Na carta, diziam estar em uma comunidade de hippies remanescentes. A carta terminava com beijos, e não bjs, o que demonstra que, além da preservação dos ideais de paz e amor, os pais de Melissa mantêm certa ortodoxia em relação à língua.
Eu poderia ficar discorrendo sobre os pais de Melissa por muitas páginas, no entanto, ocorre-me agora algo que foi dito por Melissa e que preciso registrar. Quando chegaram à aldeia as notícias de descalabros políticos que deterioravam aos poucos as Instituições e colocavam em risco a própria democracia, demonstrei preocupação em relação ao futuro do país, bem como à ausência de argumentos capazes de fazer as pessoas adquirirem maior consciência, foi quando Melissa me acalmou dizendo:
“Não se apoquente com isso, querido, o que aos outros compete fazer, você não pode fazer, sua parte você faz com mestria, você é pacifista, amoroso e sensato; cada um acredita no que quer acreditar; se nem mesmo fatos podem conscientizar muitas pessoas, argumentos também não o fará, o tempo se encarregará de tudo.”
“A morte é um truque de ilusionismo”, disse-me Melissa em dezembro, “devo admitir que um truque tão bem feito que, quase todos continuam a acreditar nele.”
Melissa pegou o barco e se foi. Volta e meia, encontro seus pais, eles ainda têm uma coleção de vinis de Beatles, Stones, Janis Joplin etc.Vou caminhando por aí, sem GPS, de aldeia em aldeia, esperando que meu barco atraque no porto. Continuo ouvindo Melissa, muito do que penso e escrevo é ditado por ela. Ah! Melissa...