Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Varejeiras grogues riscavam o ar carregado de pó áspero de poluição, desenhando linhas azuis em zigue-zague sobre os esquálidos corpos de homens, mulheres e crianças que abarrotavam ruas e praças.
O país estava derretendo como um iceberg errático num oceano de lama e estupidez. Não havia Ministério do Planejamento e, com efeito, nada era planejado, as ações do governo eram meras gambiarras pontuais e ineficazes. O Ministério da Cultura fora extinto. Já o Ministério da Educação ainda existia, no entanto, deixara de cuidar da educação, transformara-se em balcão de negócios espúrios. A cúpula do poder estava maculada por tráfico de influência, ofensas grotescas, desequilíbrio, ódio, despreparo, assédio sexual e toda sorte de crimes. Eram tantas as mazelas que os homens retos desistiram da luta pelo bem, tornaram-se sorumbáticos e cabisbaixos.
O presidente assumiu publicamente a própria incompetência, declarando-se inepto para o cargo, em resposta a tal declaração, seus passionais apoiadores disseram:
“Não tem ninguém mais honesto e sincero para conduzir o país.”
Então chegou o dia em que o caos podia ser notado até mesmo pelos mais alienados e/ou distraídos. Numa manhã nublada, uma notícia caiu como uma bomba. O governo acabava de tornar público o Edital cujo objetivo era encontrar um Projeto que pudesse melhorar o país e apontar um caminho para transformá-lo em nação.
No dia seguinte, Tales Heráclito Soneto estava parado em frente a um prédio comercial com placa de aluga-se. Tales, queixo fincado no peito para evitar olhar para a desolação, recebeu uma revelação. No mesmo dia – usando caneta esferográfica e papel de pão – escreveu seu Projeto e foi apresentá-lo em uma repartição pública.
“Em que posso tá ajudando, senhor?”, perguntou o funcionário a Tales.
“Elaborei um Projeto capaz de tirar o país do caos e transformá-lo em uma nação próspera e ordeira”, disse Tales, “aqui está.”
“Tales Heráclito Soneto”, disse o funcionário, olhando para as folhas manuscritas, “o senhor tem um nome interessante.”
“Meu pai gostava de Filosofia, segundo a tradição clássica, Tales, nascido em Mileto, é considerado o primeiro filósofo; Tales é o filósofo do eterno fluir.”
“E quanto ao Soneto?”
“Meu pai também gostava de poesia.”
“sei, mas... veja bem, a inscrição do Projeto tem de tá sendo on-line, senhor.”
Graças à ajuda de amigos, Tales inscreveu seu Projeto. Depois precisou providenciar quilos de documentos e declarações. Depois uma declaração declarando que todos os documentos e declarações apresentados eram verdadeiros. E depois uma declaração de veracidade declarando que a declaração anterior era verdadeira...
“Muito bem”, disse, por fim, o funcionário, “agora só tá faltando o comprovante de residência, senhor.”
“Confesso que... fui atingido pela crise, estou morando nas ruas.”
“Nosso Departamento de Marketing mudou a definição, não existe mais morador de rua, agora é: cidadão em situação de endereço flutuante. Voltando ao seu caso, sem comprovante de residência, nada feito, é preciso tá cumprindo o regulamento, senhor.”
Um grupo de notáveis aprovou o Projeto de Tales, mas, assim como os inúmeros pedidos de Impeachment contra o presidente, ele foi arquivado. E a atual geração não conhecerá o Projeto de Tales, pois o presidente o colocou em sigilo durante cem anos. E as varejeiras continuam zumbindo sobre corpos desvalidos...