“O Brasil merece a verdade. As novas gerações merecem a verdade e, sobretudo, merecem a verdade factual aqueles que perderam amigos e parentes e que continuam sofrendo como se eles morressem de novo e sempre a cada dia. É como se disséssemos que, se existem filhos sem pais, se existem pais sem túmulo, se existem túmulos sem corpos, nunca, nunca mesmo pode existir uma história sem voz. E quem dá voz à história são os homens e as mulheres livres que não têm medo de escrevê-la”. Palavras da presidenta Dilma Rousseff na cerimônia de instalação da Comissão da Verdade, Palácio do Planalto, dezesseis de maio de dois mil e doze.
Sabe, quando você vê, enxerga, é testemunha, e está consciente disso, que a história está passando na sua frente? Poucas vezes isso acontece na sua vida. Um dia desses foi o dezesseis de maio de dois mil e doze. Uma ex-presa política, torturada, desce a rampa que liga o terceiro e o segundo andar, Dilma Rousseff, hoje presidenta da República, para instalar uma Comissão para investigar a verdade do que aconteceu na ditadura militar. E essa mesma presidenta vem ladeada de seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Sila, operário metalúrgico, sindicalista, que enviou ao Congresso a proposta da Comissão da Verdade. E vem acompanhada de mais três ex-presidentes, José Sarney, Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardosos, suas densas e às vezes contraditórias histórias, a darem aval à decisão presidencial de buscar a verdade.
E você, você está assistindo tudo isso, ao vivo, em cores, com os próprios olhos. E vê as eternas Margarida Genevois, da Comissão Justiça e Paz de D. Paulo Evaristo Arns e o ‘Brasil Nunca Mais’ nos difíceis anos setenta, e Clara Charf, companheira de Carlos Marighella, elas firmes e fortes, aplaudindo de pé a cerimônia da coragem e sendo saudadas com reverência por todas e todos. E você encontra o ex-ministro e ex-preso político Paulo Vannucchi feliz e aliviado com a instalação da Comissão da Verdade. E você vê militantes de ontem e de hoje presentes ao ato, comovidos, o coração apertado com o choro da presidenta Dilma. E você nota as lágrimas de quem está ao seu lado e as suas próprias rolando, de felicidade sim, mas também rememorando tantas histórias, tantos desaparecimentos, tantas mortes, tanta tortura, tantos exílios, tanta falta de democracia. E você chora de novo porque a democracia chegou, porque teve um Lula presidente, tem uma Dilma presidenta, tem o povo saudando a participação social e popular, as tão sonhadas eleições livres e diretas acontecendo à luz do sol, a sociedade a reconhecer-se capaz de gerir seu destino, sem tutelas, sem dominações, sem exclusões, sem chibatas e paus de arara, sem leis de exceção.
A história é feita por mulheres e homens, trabalhadoras e trabalhadores, governantes e governados. A cada momento, estamos em algum lugar, participando de sua construção. Pode ser com gestos mínimos, diários, simples: de como a gente cuida das crianças, dos animais e das plantas a cada manhã; de como se observa o que se come, mais ou menos gordura, mais verduras e legumes; de como a gente olha e admira o céu ou contempla as estrelas; do carinho que se dá a quem está ao nosso lado, do bom dia, do boa tarde, do boa noite, dos beijos e abraços.
A história pode ser feita com gestos maiores: participar alegremente da comunidade e de suas decisões, integrar a Associação de Moradores e lutar por creches, posto de saúde, melhor transporte, saneamento básico, qualidade de vida para os moradores de bairros e vilas; ser sindicalizado e, junto com os companheiros e companheiras, buscar melhores condições de trabalho, salário digno e emprego para todas e todos que podem e querem trabalhar; estar em grupos de reflexão e ler coletivamente a Bíblia e a Boa Nova;participar de partidos políticos e da vida democrática, influindo nas decisões soberanas, colocando seu nome à disposição para os diferentes espaços de participação social e política.
Ou ainda você pode estar presente em ações de vida, às vezes extremas, de lutar contra uma ditadura, de estar sujeito à prisão, à tortura, ao exílio, de dar a sua vida e o seu sangue até a morte.
Assim, a história é feita. E passa por nós, mesmo que às vezes você não se dê conta ou dela não tenha consciência plena. Mas há dias, como o dezesseis de maio de dois mil e doze, em que a história está do seu lado, passa na sua frente, você a sente viva, encarnada, e, melhor ainda, vitoriosa. Ela faz tremer seus pelos, ela eriça sua pele, ela comove as raízes mais profundas do seu ser. Venceu-se o medo, venceu-se a força, venceu-se o terror, venceu-se a morte. Volta a brilhar a vida, incendeia-se a esperança. O país tem futuro, a Nação existe. O povo canta o futuro.
A presidenta Dilma disse e eu repito, para que fique eternamente gravado: “Atribui-se a Galileu Galilei uma frase que diz respeito a este momento que vivemos: ‘a verdade é filha do tempo, não dá autoridade’. Eu acrescentaria que a força pode esconder a verdade, a tirania pode impedi-la de circular livremente, o medo pode adiá-la, mas o tempo acaba por trazer a luz. Hoje, esse tempo chegou.” Feliz e finalmente.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República