Maquiavel dizia: “Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas”. E o cardeal Richelieu lembrava em seu testamento político: “O que é apresentado de súbito em geral espanta de tal maneira que priva a pessoa dos meios de fazer oposição, ao passo que quando a execução de um plano é empreendida lentamente a revelação gradual do mesmo pode criar a impressão de que está sendo apenas projetado e não será necessariamente executado”. Entre as trilhas abertas por esses dois grandes formuladores da ciência política caminha o Brasil.
Quem garante que o País não se tem esforçado para abrir uma nova ordem de coisas pode estar acometido de cegueira partidária, essa que confere aos adversários (momentâneos) dos governos a capacidade de enxergar apenas por um olho, o da oposição. E quem defende a tese de que o edifício das reformas já está construído - e que tudo anda às mil maravilhas - é um habitante passional do condomínio governamental. Por sua lupa de lentes grossas, os feitos batem nas alturas. Nem uma coisa nem outra. O País faz consertos, sim, nas estruturas, mas o trabalho é lento. Os avanços não seguem o modelo “arrombar a porta” da Blitzkrieg. Por aqui a estratégia lembra mais a do general Quintus Fabius (275 a.C.-203 a.C.), conhecido por fustigar o cartaginês Aníbal Barca nas guerras do sul da Itália, nunca recorrendo ao confronto direto, mas “comendo pelas bordas”. Faz mais nosso estilo. Quem não se lembra da angústia causada pelo abrupto confisco da poupança na era Collor?
Nas últimas duas décadas avançamos no terreno da racionalidade. Implantaram-se sistemas, métodos e programas voltados para o aprimoramento da gestão pública, da moralização dos padrões da política, da defesa dos direitos humanos, da igualdade entre classes e gêneros. Nossa democracia foi bastante lapidada. Na última semana mesmo, o País instalou a Comissão da Verdade, com o objetivo de investigar crimes perpetrados por agentes públicos, e ganhou a Lei de Acesso à Informação, pela qual os cidadãos tomarão conhecimento do que se passa nos municípios, Estados e União, em todos os Poderes. No rol de mecanismos para moralizar a gestão pública vale destacar a Lei de Responsabilidade Fiscal, de maio de 2000, que condiciona gastos de Estados e municípios à capacidade de arrecadar tributos. É mecanismo central para barrar a gastança de administradores que tentam pendurar-se na gangorra eleitoral. Mesmo assim, não é pequeno o número de entes federativos que levantam dificuldades para aplicar na plenitude aquele dispositivo, sob o argumento de que os orçamentos se têm estreitado. Como se vê, por aqui a cultura moralizante baixa a conta-gotas. E sob muita lentidão.
Ainda na trilha dos direitos humanos e da cidadania se pode apontar um conjunto normativo de muita significação, como a Lei Maria da Penha, contra agressões à mulher no ambiente doméstico e familiar; a Lei da Ficha Limpa, que torna inelegíveis candidatos e governantes às voltas com a Justiça; o Estatuto da Criança e do Adolescente; a lei das cotas, que garante reservas em vestibulares para negras e negros; o dispositivo que pune empresas por estabelecerem menor remuneração para mulheres que exercem a mesma função que homens; e a lei para o refugiado, considerada uma das mais avançadas do mundo no gênero, que deverá ampliar os direitos dos imigrantes. O acervo de instrumentos legais, como se pode concluir, é vasto e contempla os mais variado núcleos, categorias e esferas. Ao longo das legislaturas vão ganhando reparos, passando por ajustes e se incorporando às culturas administrativa e política. Moldam-se, paulatinamente, às pautas cotidianas e mesmo as leis que recebem protestos de setores organizados - caso da Lei Seca - acabam sendo aplaudidas. Chama a atenção o fato de que a nova ordem que se esboça resulta de uma forte ação social. Essa é a boa nova. O País alarga o caminho do aperfeiçoamento das instituições sob o empuxo de uma efervescente democracia participativa, como se vê na mobilização de caravanas que comparecem às audiências públicas no Congresso e às sessões do STF, cuja sintonia com a sociedade nunca foi tão afinada.
O movimento centrípeto - das bases para o centro da política tradicional - sinaliza horizontes promissores, eis que abre a perspectiva de uma sólida democracia participativa. Ou seja, funcionando como aríete contra os vetustos bastiões dos exércitos que tomam assento no Congresso, os polos de poder que nascem nas vanguardas sociais forçam partidos a assumir posições inovadoras e a desconcentrar a velha política. O Estado oxigena suas estruturas e a Nação passa a ganhar altas taxas de civismo.
Exemplo dignificante dessa força centrípeta é a vassoura ética simbolizada pela Lei da Ficha Limpa. Construída nas oficinas sociais, foi levada ao Parlamento com o registro de mais de 1,3 milhão de assinaturas. A conclusão emerge: o Brasil não é mais um gigante dormindo em berço esplêndido. Está desperto. Uma bandeira reformista tremula por todos os espaços. Claro que a representação política faz a sua parte. Daí se aduzir que vivemos hoje sob o signo de uma feliz interação da macropolítica, sob as cúpulas do Parlamento, com a micropolítica, sob o império dos novos circuitos de representação (organizações, núcleos, grupos, etc.).
Outra hipótese floresce. A mudança, a inovação, a renovação são processos que começam a inspirar a sociedade em sua caminhada. Um Brasil racional, mais justo e ético, está sendo plasmado nos fornos sociais. Ao contrário do que alguns ainda verberam, as massas não desejam apenas pão e circo. Querem serviços de qualidade. Se a democracia representativa não atende ao seu clamor, levantarão com vigor a bandeira da democracia supletiva. Uma leitura dos eventos de nossa política mostra que o aviso é para valer.
*Gaudêncio Torquato é jornalista e consultor político