Há tempos, o ser humano produzia sobretudo arte. As crianças aprendiam desde cedo a desenhar, ou a tocar piano, ou a pintar, ou a dançar. Tivessem ou não talento. Lembro-me do metrônomo, instrumento de tortura que me acompanhou ao longo de vários anos de estudo de piano. E das aulas de balé, de pintura em porcelana etc. E o teatro, que finalmente conseguiu seduzir-me, nas aulas do Tablado e nos grupos amadores da Universidade.
Não me dediquei a nenhuma forma artística a não ser ao teatro. Mesmo assim, o estudo em outra área acadêmica, os compromissos docentes e familiares sempre mais exigentes obrigaram-me a deixá-lo para trás. Mas não posso negar que minha estética foi “educada” por esse contato braçal, manual, sensorial com as diferentes formas de arte que minha família e a escola onde estudei teimaram em cultivar durante toda a minha infância e adolescência.
O contato com a beleza forma a sensibilidade para o belo, pensavam meus educadores, todos humanistas inveterados. E, assim, eu e a minha geração passamos por esse contato direto com a beleza produzida pela inspiração humana, a fim de por ela sermos marcados por toda a nossa vida. A arte depurou nossa sensibilidade e senso estético, criou em nós um radar interior que passou a detectar onde estavam as criações artísticas de valor e aplaudidas segundo os cânones da beleza.
Hoje há outra produção que infesta o cotidiano do planeta: o lixo. Produzido a partir daquilo que o sistema social capitalista rejeita e descarta, o lixo vai tomando proporções tão gigantescas, que se converteu em verdadeiro problema social e político em muitos países. Nos mais opulentos, pode-se encontrar de tudo no lixo, desde sofás e televisores até restos de comida e garrafas cheias de bebida. De tal modo é assim que há muita gente que vive do lixo, nele catando e descobrindo o que pode ser aproveitado, reciclado, reutilizado, tornando-se fonte de recursos e de vida.
O gênio de um artista, no entanto, foi capaz de reunir duas coisas aparentemente inconciliáveis: lixo e arte. Transformar o lixo em arte, fazer o lixo – lugar da imundície e da feiúra repugnante – tornar-se beleza, e provar que isso é possível, foi a empreitada admiravelmente bem sucedida de Vik Muniz, artista plástico brasileiro de fama internacional. Seu filme “Lixo extraordinário” é todo ele feito de relatos comoventes de um grupo de pessoas que vive do lixo e que faz a empolgante descoberta que pode transformar o que ali vê, encontra e coleta em arte da melhor qualidade.
Vik Muniz é o artista que acompanha o grupo e as pessoas, uma a uma, ajudando-as a voltar a crer em si mesmas, em sua capacidade de beleza, em sua humanidade mais profunda, que ressurge atrelada à beleza da arte que os dejetos em meio aos quais vivem e atuam faz eclodir quando transfigurados pela estética que se constitui pelo avesso dos cânones estabelecidos.
Agora, durante a Rio+20, quando a Cúpula dos Povos estará reunida no Rio de Janeiro, Vik Muniz está de volta com seu talento e seu compromisso em fazer deste mundo um lugar mais habitável. Desta vez sua convocação não é apenas para um pequeno grupo ligado ao trabalho no lixão, mas para toda a sociedade. O projeto “Paisagem”, que Vik vai liderar nos próximos dias, é um convite a todos e todas que habitamos na Cidade Maravilhosa ou que por aqui estejamos durante os dias de mobilização da Rio+20 . Trata-se de contribuir com peças descartadas e recicláveis (latas, garrafas plásticas etc.) para a confecção de um painel imenso, que será erigido sobre a baía de Guanabara, recriando-a a partir da recuperação do material reciclável que antes se encontrava condenado a ser atirado em caçambas ou em depósitos de lixo, poluindo o ambiente e perturbando o equilíbrio ecológico.
Na tenda onde será instalado o projeto, as pessoas entrarão em grupos de 10 ou 20, levando seu material e colocando-o sobre o painel que irá assim ganhando forma e reproduzindo a matriz original, que é a vista soberana e bela do Rio de Janeiro, a partir de uma fotografia clicada pelo próprio artista do alto do Mirante Dona Marta, em Botafogo.
Ao final, com o painel já pronto, será oferecido à contemplação dos visitantes. Um testemunho de que a beleza acontece gratuita e humildemente em um processo coletivo para o qual todos contribuíram e fizeram sua parte. Quando isso se dá, o lixo se torna extraordinário, a feiúra refulge em súbita beleza, o rosto escondido pela feiúra e pelo abandono brilha no olhar do Criador que vê que tudo que criou é muito bom.
*Maria Clara Bingemer é teóloga e professora