A foto na capa de um grande jornal brasileiro surpreende e emociona. Toda vez que a olho traz novos sentimentos e sensações. São quatro pessoas, três homens e uma mulher. Dois estão de sandálias havaianas, no chão ladrilhado cheio de desenhos, o homem gesticulando, parecendo explicar alguma coisa; os outros dois, cara de japonês, mãos nos bolsos, de tênis, parecendo escutar. A mulher, cabelos castanhos, pernas à mostra, parece um tanto assustada ou com frio, braços enrolados num casaco, o olhar torto, ou perdido, meio sem saber o que está acontecendo. Por detrás dos quatro personagens, uma palmeira verde plantada em vaso grande, e casas aparecendo ao fundo, com tom de ser um bairro de classe média.
Diz a manchete de primeira página de um dos principais jornais do Brasil: “Moradores de rua acham R$ 20 mil e devolvem ao dono – Os catadores e moradores de rua Rejaniel Santos e Sandra Domingues acharam numa árvore R$ 20 mil furtados de um restaurante na zona leste de São Paulo e entregaram o valor à polícia. Os donos do dinheiro ofereceram emprego e ajuda para os dois viajarem ao Maranhão, onde vive a família de Santos. O casal disse ter sido ameaçado pelos ladrões e, por isso, foi instalado pelos sócios num hotel” (Folha de São Paulo, 10.07.2012.) E a explicação da foto: “Os catadores Rejaniel Santos e Sandra Domingues, com os sócios do restaurante roubado.” O restaurante é o Hokkai Sushi, Tatuapé, zona leste de São Paulo.
Rejaniel de Jesus Silva Santos é natural do Maranhão e veio para São Paulo para trabalhar com o irmão na construção civil. Casou-se e teve um filho, com quem não tem mais contato. Após a separação, Santos perdeu o emprego, a casa e foi morar nas ruas. Conheceu a atual companheira, a paranaense Sandra, nas ruas. Ele vive com ela há cerca de quatro meses, debaixo do viaduto Azevedo, no Tatuapé. Não vê a família, que mora no Maranhão, há 16 anos. Sandra, paranaense, não sabe a própria idade.
Quando entrevistado sobre seu gesto, Rejanie diz: “A primeira coisa que veio na minha cabeça foi avisar a polícia.” E avisou a polícia, dinheiro na mão. “A minha mãe me ensinou que não devo esperar e se vir alguém roubando devo avisar a polícia.” E a esperança, possivelmente misturada à espera de 16 anos sem contato: “Se minha mãe me assistir pela TV lá no Maranhão, vai ver que o filho dela ainda é uma das pessoas honestas neste mundo.”
O fato virou notícia. Rejaniel e Sandra deixaram de ser invisíveis e viraram capa de jornal, matéria principal de noticiário na televisão. Como seu Antenor, que limpa banheiros nos Anexos do Palácio do Planalto, em Brasília. Toda vez que eu ia ao banheiro, Antenor estava lá. Um senhor quieto, de poucas palavras, silencioso mesmo, aparentes 50 anos. Comecei a puxar a conversa, como faço com todo mundo que trabalha no Palácio. Descobri que limpa banheiros das 7h da manhã às 16h. Mora em Planaltina. Antes de descobrir se tem família, saber de seus eventuais problemas, o que pensa, o que faz fora do serviço, trocaram seu lugar de trabalho. Agora, encontro seu Antenor esporadicamente nalgum corredor, ou limpando os banheiros dos senhores engravatados em outro setor do Palácio.
Retrato de um país? Retratos de um tempo?
São as pessoas ‘invisíveis’ que fazem e constroem o Brasil, constroem uma Nação. Trabalham. São cidadãos e trabalhadores, todas e todos, seja morando na rua ou limpando banheiros. Estes dias, um companheiro que se despede do governo, Nelson Motta, e vai voltar para a bela Florianópolis, assim escreveu na carta de despedida: “Homenagens especiais, quero fazer duas: Gosto muito de observar o cotidiano dos ambientes em que trabalho, e a mim causou grande impressão o trabalho daquelas que parecem ‘invisíveis’ no nosso cotidiano eletrizante de trabalho, aqueles e aquelas que são fundamentais para o desenvolvimento do nosso trabalho no governo, ‘mais político, digamos assim’, que são mandados e não são quase ouvidos, dificilmente são chamados a opinar, e estão sempre ali. Falo dos contínuos, das secretárias e dos garçons que nos servem os cafezinhos e águas... (E quem limpa os banheiros, acrescento eu.) Fiz ótimas amizades com Eles e Elas, tanto na Secretaria Executiva quanto na SAF. Minhas humildes saudações para vocês”.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República