Te escrevo esta carta, a exemplo das Cartas Pedagógicas de Paulo Freire, olhando o futuro. Quero te contar para que fique registrado, quando já estou numa fase da vida em que (quase) olho mais para trás que para frente. Acabei de participar de um evento histórico: A Rio+20 e Cúpula dos Povos. Foi neste mês de junho na bela cidade do Rio de Janeiro. Um acontecimento: durante quase duas semanas o Brasil, o mundo, milhares de pessoas, centenas de governantes, debateram, refletiram e assumiram compromissos.
Passei por muitas situações interessantes. Escrevi a pedido da Assessoria de Comunicação do CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar -: “QUATRO BANHOS E UMA REFLEXÃO. Seis da manhã, quinze pessoas no campinho de futebol da Reserva de Patrimônio Natural Bom Retiro, em Casimiro de Abreu, RJ. O primeiro banho: deitar na terra, sobre a grama úmida de orvalho e fazer exercícios. O segundo: ‘banhar’ todo corpo com argila misturada com alecrim e limpar a pele. Terceiro; caminhar por uma trilha até um lugar com sol – cantar, abraçar-se, celebrar o dia. Quarto: todos juntos no riacho de água límpida e cristalina, lavando a argila, limpando a pele e o corpo.
Tudo pronto para começar a jornada da oficina da Universidade Popular dos Movimentos Sociais, com o tema Saúde, Sustentabilidade e Bem Viver. Conversar sobre os movimentos sociais presentes, uns quinze – movimentos ligados à educação popular em saúde, Rede de Educação Cidadã, LGBT, movimentos do campo, economia solidária, pessoas do governo federal, gente da Academia: o que os une, o que os separa, o que fazer para avançar junto.
À noite, o professor Boaventura de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, pede que se a apaguem as luzes para ver as estrelas e o Cruzeiro do Sul na noite iluminada do que restou da Mata Atlântica, onde se situa a Bom Retiro, enquanto ele e todos tomamos uma cachaça mineira: a noite do Bem Viver.
Os movimentos sociais, todos concordam, precisam construir um novo projeto estratégico de mudança, buscar mais as convergências e menos o que têm de divergências, fazer e realizar ações e momentos de formação e educação popular onde todas as vozes estejam presentes.
O último dia começa com uma caminhada por uma trilha ecológica e termina ao redor de uma fogueira onde se cantam e dançam forrós, xotes, frevos, sambas, declamam-se poesias de amor à vida. A vida une-se à prática, a prática leva à teoria. Saúde é sustentabilidade e Bem Viver individual e coletivo. O protagonista é o povo trabalhador que se organiza e luta junto. A Universidade é popular.”
A Rede de Educação Cidadã (RECID) promoveu uma Roda de Conversa – Educação Popular e o Bem Viver -, com o objetivo de, a partir de experiências concretas, denunciar o modelo de desenvolvimento predatório nos biomas brasileiros e anunciar práticas e aprendizados que apontam para um novo modelo de convivência a partir dos parâmetros de sustentabilidade e respeito à sociobiodiversidade na Amazônia, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Mata Atlântica e Pampas. Contribuíram na reflexão Marcelo Barros, Maria Emília Pacheco e o ministro Gilberto Carvalho.
Foram dia intensos, de muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Como quando encontrei a Ceniriani Vargas da Silva, a Ni, da RECID/RS e do Movimento Nacional de Luta pela Moradia acampada há dias Vila Autódromo, de onde os moradores vão ter que sair por causa de obras das Olimpíadas/2016. Houve uma manifestação dos moradores com apoio dos movimentos sociais e populares e a Ni e outros educadores e educadoras, com a ferramenta da educação popular, fizeram trabalhos e oficinas de conscientização e organização de base.
A declaração final da Rio+20 diz: “1. Nós, os Chefes de Estado e de Governo e os representantes de alto nível, reunidos no Rio de Janeiro entre 20 e 22 de junho de 2012, com a plena participação da sociedade civil, renovamos nosso compromisso em prol do desenvolvimento sustentável e da promoção de um futuro econômico, social e ambientalmente sustentável para nosso planeta e para as gerações presentes e futuras. 2. A erradicação da pobreza é o maior problema que afronta o mundo na atualidade e uma condição indispensável do desenvolvimento sustentável A este respeito, estamos empenhados em liberar com urgência a humanidade da pobreza e da fome. 8. Reafirmamos também a importância da liberdade, da paz e da segurança, o respeito a todos os direitos humanos, entre eles o direito ao desenvolvimento e o direito a um nível de vida adequado, incluído o direito à alimentação. O Estado de direito, a igualdade entres os gêneros, o empoderamento das mulheres e o compromisso geral de conseguir sociedades justas e democráticas para o desenvolvimento.
A Cúpula dos Povos, com milhares de participantes, falou na declaração final: “Os movimentos sociais e populares, sindicatos, povos, organizações da sociedade civil e ambientalistas de todo o mundo presentes na Cúpula dos Povos na Rio+20 por Justiça Social e Ambiental, vivenciaram nos acampamentos, nas mobilizações massivas, nos debates, a construção das convergências e alternativas, conscientes de que somos sujeitos de uma outra relação entre humanos e humanas e entre a humanidade e a natureza, assumindo o desafio urgente de frear a nova fase de recomposição do capitalismo e de construir, através de nossas lutas, novos paradigmas de sociedade.
A Cúpula dos Povos é o momento simbólico de um novo ciclo na trajetória de lutas globais que produz novas convergências entre movimentos de mulheres, indígenas, negros, juventudes, agricultores/as familiares e camponeses, trabalhadores/as, povos e comunidades tradicionais, quilombolas, lutadores pelo direito à cidade, e religiões de todo mundo. As assembleias, mobilizações e a grande Marcha dos Povos foram os momentos de expressão máxima nestas convergências.
As alternativas estão em nossos povos, nossa história, nossos costumes, conhecimentos, práticas e sistemas produtivos, que devemos manter, revalorizar e ganhar escala como projeto contra-hegemônico e transformador. A defesa dos espaços públicos nas cidades, com gestão democrática e participação popular, a economia cooperativa e solidária, a soberania alimentar, um novo paradigma de produção, distribuição e consumo, a mudança da matriz energética, são exemplos de alternativas reais frente ao atual sistema agro-urbano-industrial. Os povos querem determinar para que e para quem se destinam os bens comuns e energéticos, além de assumir o controle popular e democrático de sua produção. Voltemos aos nossos territórios, regiões e países animados pra construirmos as convergências necessárias para seguirmos em luta, resistindo e avançando contra o sistema capitalista e suas velhas e renovas formas de reprodução. EM PÉ CONTINUAMOS EM LUTA!”
Isto foi e continuará sendo por muito tempo, como vês e deves estar a pensar, a Rio+20 e a Cúpula dos Povos. Salvamos o mundo e o planeta e superamos a crise em todas as suas dimensões – econômica, social e, sobretudo, ambiental e de valores? Certamente (ainda) não. Temos futuro? Certamente sim. Podemos ter esperança? Depende de mim, de ti, de nós todas e todos. Por isso, queria te escrever esta carta urgente. Para pensarmos o amanhã temos que agir como se fosse ontem. Há tempo, mas também há urgência. Haverá futuro, se entendermos o passado e cuidarmos do presente. Um abraço de vida, do teu sempre Selvino.
*Selvino Heck é assessor especial da Secretaria Geral da Presidência da República