O corpo morto simboliza a pessoa que viveu, mas não se identifica com ela. Na realidade dura, não passa de conjunto de células que iniciaram o processo de decomposição. No entanto, para os familiares, amigos e presentes ao enterro, carrega simbolicamente a história e a vida de quem morreu.
O jogo de realidade e simbolismo torna problemática a doação de órgãos, quando ocorre a morte cerebral. Se predominasse simplesmente em nós o olhar realista do biólogo ou do médico, encontraríamo-nos diante de banco de órgãos disponível. A pessoa já não está ali na existência, história, vida. Nada melhor do que aproveitar o corpo para minorar males de outros.
Entretanto, o problema não resulta tão simples. As estatísticas mostram-nos tanto a diminuição de doações quanto a crescente resistência por parte dos parentes. Não vem do lado biológico ou materalista. O problema origina-se do campo simbólico.
O corpo morto simboliza o passado. O presente da pessoa está em outro momento e relação. Na teologia católica, os que morreram em Cristo, diz São Paulo, esperam estar com Ele. “ Desejo partir para estar com Cristo, o que é muito melhor” (Fl 1,23). O morto na graça já faz parte do mundo de Deus e o corpo ali diante de nós aponta para história absolutamente encerrada. Retê-lo, conservá-lo, poupá-lo de qualquer mutilação tem mera ligação simbólica com o que já não está ali.
Evidentemente diante de qualquer alternativa que violente o corpo morto, o respeito a sua intangilidade, deixando à terra no silêncio escondido do túmulo prosseguir a tarefa de putrefação, soa coerente com a nossa natureza espiritual.
No entanto, surgiu nova possibilidade de re-significar o corpo morto. Ele transforma-se em fonte de vida para outros, já que para si mesmo só mostra a morte. Abre-se relação com o presente e com o futuro, ao abandonar-se a exclusividade da fixação no passado. O cadáver já não recorda simplesmente alguém que viveu, mas pela doação dos órgãos prossegue simbolicamente a vida terrena em outra pessoa. Não implica nenhum choque nem com a sensibilidade humana – dá-se o órgão para salvar outra pessoa -, nem com a percepção da fé. Antes, responde profundamente ao espírito cristão para o qual o serviço, a vida do irmão, a saúde do enfermo ocupam prioridades nas decisões.
Se as famílias dos mortos modificarem a mirada sobre o corpo do morto querido, doarão, sem dúvida, os órgãos válidos para que alguém viva. Não há maior alegria do que dar a vida pelo irmão. E esta vida se doa, seja na entrega de si no serviço, seja ao colocar à disposição de outro aquilo que está sob nossa decisão.
O respeito à pessoa do morto não se perde com tal oferta. Pelo contrário, amplia-lhe a ação. Pois serve de cura de alguém quando já não tem mais condições de fazê-lo com o próprio corpo vivo. Realiza-se a parábola do trigo. “ Na verdade eu vos digo: se o grão de trigo não cair na terra e não morrer, ficará só; mas se morrer, produzirá muito fruto” (Jo 12, 24).. O corpo terreno morreu, mas deixou atrás de si a vida de outro corpo. Bendita doação!
*João Batista Libânio é teólogo jesuíta