Ramon Mercader, o assassino de Trotsky, passou vinte anos numa cadeia mexicana sem jamais admitir ter agido a mando de Stalin, sem revelar sua real identidade. Esse militante dedicado não se via como um assassino e sim como quem cumpriu uma tarefa revolucionária, como quem nunca traiu seus companheiros de causa. Por isso mesmo foi condecorado como herói da União Soviética, em 1961.
Não foi uma exceção. Rudolf Ivanovich Abel nunca reconheceu que era o chefe da espionagem soviética nos EUA, nem mesmo quando foi trocado pelo piloto norte-americano Francis Gary Power.
Como estes personagens, de “O homem que amava os cachorros” e “Uma ponte entre os espiões”, João Vaccari Neto é um militante disciplinado, mas tem uma ética diferente. Em vez de aguentar o tranco sozinho, quer que o Partido dos Trabalhadores assuma, formalmente, que os assaltos aos cofres públicos, investigados pela Lava-Jato e outras operações, foram feitos em nome da legenda e não por iniciativa pessoal de seus militantes. O mea-culpa do PT abriria a possibilidade de quem está preso assumir a sua cota, sem grandes dramas de consciência, entre eles o da “traição”.
Vaccari sempre foi um cumpridor de tarefas, jamais um formulador. Não deve, portanto, ser o autor da ideia. Provavelmente ela saiu de uma cabeça mais refinada, como a de José Dirceu, este sim um estrategista responsável por grandes inflexões na história do PT, para o bem ou para o mal; na maioria das vezes para o mal.
A estratégia do “Foi a causa, companheiro” teria vários objetivos. O primeiro deles, claro, o de livrar a própria pele dos dirigentes presos, abrir uma possibilidade para que não passem o resto de suas vidas atrás das grades. Como isso aconteceria não se sabe muito bem. Não há o menor indicativo da Justiça quanto a um possível abrandamento das penas de Dirceu, Vaccari, André Vargas a partir de um pedido de desculpas do PT.
O pulo do gato estaria em outro movimento. O Partido dos Trabalhadores assumiria a culpa, mas se colocaria duplamente na condição de vítima. Tanto da “perseguição” da Lava-Jato, da qual seria o alvo final, como do próprio sistema político, ao qual os petistas apenas teriam aderido. Assim, o pedido de desculpas viria acompanhado da defesa arraigada da reforma política.
Culpar o sistema político pelos ilícitos cometidos serviria tanto para o público interno como para o público externo. É um discurso roto, esfarrapado, mas é o único ao alcance das mãos, para o PT tentar sobreviver à previsível hecatombe eleitoral de 2016 e de 2018.
Vaccari é o escudo de José Dirceu, por uma razão muito simples. O ex-tesoureiro é um homem de reputação ilibada nas hostes petistas. Na ética do PT, nunca fez nada de errado. Apenas cumpriu a missão que lhe foi dada, desviando recursos públicos para a causa e não em benefício pessoal, diferentemente de Dirceu e André Vargas, que cederam às “tentações burguesas” e locupletaram-se com o erário público.
Parodiando a Bíblia: para os petistas, Vaccari é o bom ladrão, já Dirceu e Vargas os maus, e não merecem o perdão.
A distinção entre o “bom” e o “mau corrupto” serve para consumo interno, para aplacar a militância, mas não resolve o problemão colocado à frente do PT. O tempo vai passando e o peso da cadeia começa a se fazer sentir. Vaccari está com 58 anos, tem como perspectiva uma pena de 24 anos. Ou seja, se tivesse de cumprir a punição integralmente sairia da cadeia com 82 anos! Não há horizonte para quem tem 70 anos e é condenado a 20 anos de cadeia, como é o caso de José Dirceu.
O sentimento de abandono, a rotina gris da vida carcerária, a irritação com o imobilismo petista, para utilizar uma expressão do próprio João Vaccari, e a pressão dos familiares podem dobrar os mais fortes, sobretudo em uma época em que não há mais ideologia e bandeiras para justificar o sacrifício. Elas foram enterradas pelo Partido dos Trabalhadores há muito tempo.
Vaccari mandou seu recado. Não tem vocação alguma para Ramon Mercader ou para Ivanovich Abel.