*Marisa von Bülow é doutora em ciência política e professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília
O nosso é um país de contradições. Aprovamos quotas raciais em concursos para cargos públicos e para o acesso às universidades, mas continuamos matando cada vez mais negros, cada vez mais jovens. E, quando parece que estamos avançando, voltamos atrás.
Segundo relatório da ONG Anistia Internacional, entre 2007 e 2013 o número de homicídios decorrentes de intervenção policial no Estado do Rio de Janeiro, um indicador importante de civilidade e de respeito aos direitos humanos, caiu de maneira ininterrupta. Mas a tendência positiva foi interrompida em 2014 e, desde então, não para de piorar. Dos mortos, a grande maioria é de negros e jovens.
Os dados de outro relatório recente sobre a atuação de policiais no Rio de Janeiro, produzido pela Human Rights Watch, assustam. De acordo com a pesquisa, nada mais nada menos do que um quinto de todos os homicídios registrados na cidade do Rio de Janeiro no ano passado foi cometido por policiais.
Só em 2015, foram 645 pessoas mortas pela polícia. É claro que muitas dessas mortes podem ser justificadas com base na lei. Mas muitas foram resultado de balas perdidas e de execuções. Muitas foram de crianças, algumas que simplesmente estavam sentadas à frente das portas de suas casas ou caminhando pela rua. E o Rio de Janeiro não é uma exceção no Brasil. Segundo dados da Ouvidoria das Polícias de São Paulo, entre 2010 e 2016 as polícias civil e militar mataram pelo menos 191 menores de idade, sendo 10 destes com menos de 14 anos.
Um país surreal
A Anistia Internacional lançou este mês um novo aplicativo para celulares, o “Fogo Cruzado”, por meio do qual qualquer cidadão pode registrar a ocorrência de tiroteios nos bairros do Rio de Janeiro. Também pode dar outras informações, como se há ou não vítimas fatais ou feridos. Um mapa colaborativo mostra o número e o local das ocorrências.
Outros aplicativos semelhantes, que nos acostumamos a usar nos nossos cotidianos, servem para ajudar a fugir de congestionamentos, informar onde há uma farmácia aberta de madrugada, ou um bom restaurante... Os cariocas agora poderão checar onde houve o tiroteio mais próximo e onde não ir para evitar balas perdidas.
Infelizmente, aqueles que moram nas periferias, os mais pobres, jovens e negros, continuarão sem ter para onde escapar. Continuarão no fogo cruzado.
O nosso não é apenas um país profundamente desigual, contraditório, e que volta ao passado quando parecia finalmente estar avançando. O nosso é um país surreal.