Tudo parecia correr dentro do script que vinha sendo articulado nos bastidores por boa parte do establishment político: aprovado em definitivo o impeachment de Dilma Rousseff, a cabeça seguinte na guilhotina seria a de Eduardo Cunha, que já rolou, e, logo depois, a do ex-presidente Lula, que seria denunciado e, possivelmente, condenado, embora dificilmente preso por causa do triplex no Guarujá e do sítio em Atibaia. Mas ficaria inelegível, contentando seus adversários. Liquidado isso, a Lava Jato poderia marchar para o fim. À maioria dos demais políticos investigados caberia uma saída pela janela do caixa 2, aberta por uma planejada mudança na lei que criminalizaria essa prática, mas só daqui para frente. Esse roteiro parecia funcionar até o início da entrevista da força tarefa da Lava Jato que apresentou nesta quarta-feira a denúncia contra o ex-presidente.
Esperava-se um tiro de canhão no ex-presidente, mas o que veio foi um míssil, quase uma ogiva nuclear, que vai atingir muito mais gente, em volta e à distância. Ao apontar Lula como o “comandante máximo” do esquema investigado na Lava Jato, juntá-lo ao pregresso Mensalão e montar, ao vivo e com slides, uma narrativa em que o ex-presidente aparece em diversos diagramas como figura central de um megaesquema de corrupção, os procuradores dinamitaram as saídas da Lava Jato para todos. A palavra “propinocracia”, tantas vezes repetida pelo procurador Deltan Dallagnol, atinge todo mundo, incluindo aí o próprio sistema político, partidos, governos, empreiteiros e talvez até quem esteja desavisadamente passando ali perto só para atravessar a rua.
Dallagnol desenhou esquematicamente um sistema político que só adquire governabilidade mediante o pagamento de propinas - e aí seria lícito perguntar como foram formadas outras maiorias parlamentares, de outros presidentes anteriores e posteriores. Pagaram todos, a todo mundo, o tempo todo? E o que vai acontecer com eles?
Ao lado do PT, foram nominados como beneficiários o PMDB e o PP, mas a linha de raciocínio dos procuradores leva à criminalização de todos os partidos que estão ou já estiveram no poder e das indicações políticas para cargos em estatais. A denúncia em questão pode tratar apenas de Lula e mais sete pessoas a ele ligadas, mas, em tese, todo mundo que vive na “propinocracia”, recebe propina. Se Lula é um “general” que está no centro de uma grande organização, e se todo o dinheiro que ali circulou é propina, não haverá lógica em poupar também ninguém do outro lado. Na visão da força tarefa, portanto, todos os que foram beneficiados com recursos oriundos do Petrolão receberam propina, que não é caixa 2.
Se acolhido esse ponto de vista, vai-se pelos ares qualquer tentativa de virar a página da Lava Jato, para o bem e para o mal. Não haverá acordão, pizza ou algo assim. Mas também não haverá qualquer pacificação do ambiente político.
Além de atingir os outros políticos mencionados e investigados na Lava Jato, entre eles os do PMDB de Michel Temer, a investida da força tarefa contra Lula, se referendada pelo juiz Sergio Moro - a quem cabe aceitar a denúncia e julgá-lo - terá também o efeito de jogar gasolina nos ânimos já incendiados do ambiente político. Por mais que o ex-presidente tenha sofrido desgastes de imagem, ele ainda é um mito para certa parcela da população - algo perto de 20%, segundo as pesquisas. E mitos não se dissolvem como Sonrisal, sem barulho ou consequências.