O Brasil vive sua maior crise político-institucional desde a redemocratização - ou mesmo desde a Proclamação da República.
Os três Poderes estão sob suspeição pública. Legislativo e Executivo estão no banco dos réus, o que, em si, não caracterizaria anomalia maior se quem os julga também lá não estivesse. E, no entanto, o Judiciário também está.
Seu ativismo político, sem sustentação constitucional e sem o lastro do voto popular, tornou-se um dos fatores da crise. E não há crise maior que a do Poder Judiciário, pois dele depende a solução pacífica dos demais conflitos - políticos, econômicos, sociais.
Sem Justiça, os conflitos desembocam em desordem, que, em regra, faz da democracia sua primeira e fatal vítima. E é esse o risco que neste momento corremos.
Não há dúvida de que o combate à corrupção, empreendido pela operação Lava Jato, é um dos acontecimentos centrais desta etapa da história do país. Graças a ela, revelou-se um projeto criminoso de poder, empreendido desde a cúpula governamental, que lesou o Estado e destruiu sua principal empresa, a Petrobras.
A corrupção sistêmica, sem precedentes em nossa história, associou-se à incompetência gerencial e o país vê-se hoje diante de uma das piores crises econômicas de sua história. E a insegurança jurídica desponta como o dado mais inquietante dessa conjuntura.
A receptividade popular à operação Lava Jato fez com que, em alguns momentos - e não poucos -, derivasse para um intolerável populismo judicial, atropelando procedimentos básicos do devido processo legal. Uma dessas anomalias, que, longe de ser a única, fere as demais, é a da inversão de um dos princípios universais do Direito.
Presunção de inocência tornou-se presunção de culpa, já que as delações premiadas têm seu conteúdo revelado antes de confirmada a veracidade de seu teor. E geram consequências.
A simples menção ao nome de um político transforma-o em leproso perante a mídia e a opinião pública, ainda que, adiante, a acusação se mostre infundada. É uma espécie de condenação sem julgamento. Os vazamentos, constantes, rotineiros, deixaram de ser exceção; tornaram-se regra. Pior: vazamentos seletivos, fora de seu contexto completo, levando a interpretações distorcidas do que foi dito. E não apenas.
O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ignorando o que está na Carta, há algum tempo, pediu a prisão sumária de dois senadores - Romero Jucá e Renan Calheiros -, sem flagrante e sem base legal. Ativismo político, populismo judicial. Mas há mais.
A Constituição (artigo 5º, inciso LVII) diz que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. No entanto, o STF admitiu a prisão após a decisão em segundo grau, numa interpretação heterodoxa da Carta.
Presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, afastados de seus cargos pelo STF sem que houvesse previsão constitucional para tanto. O último se recusou a receber a intimação e manteve-se no exercício da presidência.
Por fim, ontem, mais uma pérola. A Suprema Corte determina à Câmara dos Deputados que reinicie o processo legislativo de projeto de lei já concluído e enviado para o Senado.
Em Curitiba, sucedem-se prisões provisórias que se transformam em preventivas, por tempo indeterminado. Sentença prévia. Nesse ambiente, pipocam as delações premiadas, instrumento legal eficaz, mas a ser aplicado sem coerção. O juiz não pode relativizar a lei, nem muito menos a ela se sobrepor.
E há mais: a ação legisferante do Judiciário. Não começou agora. O STF legislou, de alguns anos para cá, sobre aborto amplo, casamentos homoafetivos, igualdade racial e de gênero, morte assistida, eutanásia, entre outros temas. Usurpou, assim, prerrogativas do Legislativo, abusando do expediente de “modular” decisões, sob o argumento de preencher lacunas da legislação.
Se o poder corrompe, o poder absoluto, ensinava LordActon, corrompe absolutamente. Uma boa causa - justa e inadiável - como o combate à corrupção não pode ter como efeito colateral a quebra do ordenamento jurídico. Lembremos, pois, nestas circunstâncias, de nossa referência máxima na defesa da legalidade, Ruy Barbosa: “Fora da lei, não há salvação”. Não há mesmo.