Tempos difíceis sempre trazem à tona o pior das pessoas.
Tempos difíceis e cumulativamente estranhos, trazem o estranhamente pior.
Você trafega dia e noite entre gente louca.
Mantidos a baixo custo - as circunstâncias assim impõem -, certos profissionais empertigam-se e curvam tensamente os ombros, e assim se apresentam: empertiga-damente curvados ao dia a dia de dinheiro curto; sem almoço ou jantar fora, sem roupas ou sapatos novos, sem viagens; e a casa própria, então? Nem pensar.
É uma vida tosca, sem colorido algum.
Passam a ver tudo em preto e branco e daí a imaginarem-se num filme da 2ª Guerra Mundial, é um pulinho: agem como se a corda lhes estivesse ao pescoço.
Olhos arregalados, insones.
Ao menor sinal de piora nas vendas - e, por tabela, de seus salários -, seus corpos se empertigam e se curvam - mais ainda.
Esses, os humildes.
Mas há os arrogantes.
Vindos de lares já conflagrados e sem dinheiro algum; sem ter onde caírem mortos, apegam-se a um eventual sobrenome de importância, ou a algum gene da mesma época: de há muito, muito, tempo atrás.
Empinam os narizes e saem arrotando o conhecimento e a importância que não têm.
Assim como os humildes, apresentam-se com roupas puídas, de cinco ou seis estações passadas – no caso, é um charme -, e se empertigam, mas não se curvam, não.
Olhos arregalados, insones.
Conhecem sempre alguém: um amigo de um amigo, de um amigo, que vai lhes arranjar um cargo na gerência de uma grande empresa - o que na linguagem das pessoas sãs que dizer: atender o telefone e servir o café.
E há os folgados.
Os folgados sempre têm muitos planos; são inteligentes, mas sempre têm uma dor na coluna, ou no joelho, ou no dedão do pé esquerdo.
A cabeça lhes dói, ou o olho direito, ou a orelha esquerda, enfim, sempre algo os impede de pôr em prática todo o seu brilhantismo, o seu potencial.
É realmente um azar.
Não têm os olhos arregalados e dormem muito bem, mas ao menor sinal de sucesso alheio, transmudam-se, e passam a ser catalogados na subespécie dos folgados arrogantes; que é um híbrido, como você deve imaginar.
A quintessência dos alucinados.
Evidentemente que não estão nem aí, assim como os folgados padrão, mas não estão nem ai, com os narizes em pé.
O mundo lhes deve. Tudo, praticamente.
Todos têm que lhes prover tudo. De mão beijada.
E isto porque a impossibilidade de seu sucesso reside exatamente nessa sociedade discriminatória, preconceituosa, que lhes retira toda e qualquer chance.
Nem estudam e nem trabalham, porque a sociedade não lhes oferece qualquer oportunidade - ou porque a mãe, que é faxineira, ainda pode lhes comprar aquele tênis de grife.
Infelizes de toda sorte caminham como mortos-vivos nas esburacadas estradas, e ruas, e vielas terceiromundistas - essas que não levam a lugar qualquer, que não de volta ao mesmo mundinho infinitamente pequeno e sem horizonte, de uma sociedade inteiramente doente, forjada por gerações que não aprenderam a pensar.
Olhos arregalados, insones; bem-dormidos empinados: a horda dos que não tomaram o remedinho hoje só faz aumentar.
E certamente não será a bonança que redimirá os alienados todos; a bonança poderá pô-los a dormir, o que é um ganho, naturalmente.
Mas apenas o espelho. Apenas o espelho redime.
Apenas quando uma pessoa, ou uma sociedade, passa a se enxergar, é que lhe é possível enxergar a realidade em que vive, pensar e decidir.
Fora daí é só medo. E gente louca.
Muita gente louca.