Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
O pessoal da redação estava reunido diante das imagens. Até mesmo os mais velhos e experientes jornalistas foram acometidos por uma sensação de asco diante das cenas. A caçula do grupo, uma estagiária cheia de entusiasmo e sonho, tapou a boca com as mãos e correu para o banheiro.
As cenas eram, de fato, estarrecedoras. Soares, o jornalista mais velho do grupo, balançou a cabeça num gesto de reprovação.
“O que foi?”, perguntou o Lúcio – outro jornalista do grupo.
“Que pergunta é essa?!”, disse o Soares, “saiba que, mesmo depois de cinquenta anos no jornalismo policial, conservo ainda compaixão”, apontou para as imagens e arrematou, “essas cenas são capazes de embrulhar até o estômago de um avestruz.”
Seguiu-se um silêncio tenso. Apoiando-se nas paredes com a mão direita, a estagiária retornou do banheiro, enquanto enxugava o suor da testa com a mão esquerda. O novato Felipe – menino de vinte e poucos anos de idade -, não correra para o banheiro; mas estava pálido e lasso como uma folha velha de papel de seda.
“E pensar que esse tipo de ação, além de desumana, é ineficaz”, continuou o Soares, “não resolve o problema do narcotráfico, posso assegurar que a maioria dessas pessoas não tem nenhum envolvimento com o crime.”
Os olhos de Omar, o chefe de redação, piscaram amiúde e acelerados atrás das lentes dos óculos. Então ele tirou os óculos, esfregou os olhos e perguntou:
“Alguém efetuou a contagem?”
A pergunta era dirigida a todos os presentes, e até aos ausentes, Omar só queria uma resposta que fosse capaz de mensurar o que ocorrera na Comunidade dos Farrapos.
“Contei até oitenta e cinco”, respondeu o cinegrafista.
“Você contou até oitenta e cinco e parou com a contagem?”, perguntou o Lúcio.
“Foi exatamente o que aconteceu”, continuou o cinegrafista, “quando cheguei a oitenta e cinco, os milicos receberam uma mensagem de algum superior hierárquico e expulsaram todos os profissionais de imprensa do local.”
“O pior é que vamos ter de maquiar, recebi ordens para divulgar um número bem menor de vítimas”, disse o Omar com um visível semblante de contrariedade.
“E quantas vítimas devemos divulgar?”, perguntou o Soares.
“Três vítimas”, respondeu lacônico o chefe de redação.
“Mas isso é um absurdo!”, exclamou o Soares, “recuso-me a participar dessa farsa, os moradores da Comunidade dos Farrapos são seres humanos, não vou dizer que são iguais aos magnatas da elite para não ofendê-los, já que os moradores dos Farrapos são infinitamente melhores que essa turma da elite.”
“Sei disso”, ratificou o Omar, “mas ordens são ordens.”
“Então cumpra as ordens você”, disse o Soares, “eu estou fora.”
O Soares deixou o crachá sobre a mesa e retirou uns objetos de uso pessoal da gaveta. Despediu-se dos colegas e deixou a redação.
“Qual você acha que foi o número real de vítimas?”, perguntou o Omar ao cinegrafista.
“Impossível dizer, havia corpos espalhados na viela até onde a vista alcançava, e também em vielas transversais e becos adjacentes”, respondeu o cinegrafista.
“Você está ligeiramente equivocado”, disse o Omar, “eram três corpos”, fez uma ligeira pausa e arrematou: “todos concordam?”
E todos concordaram. Até mesmo a estagiária cheia de entusiasmo e sonho.