Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Quando o sol baixou ao ocaso e sobreveio o crepúsculo, Guiomar Cristal – vinte e cinco anos de idade, extremamente vaidosa e dona de invejável beleza – retornava ao lar quando, inopinadamente, um sinistro presságio a inquietou; pungentes preocupações oprimiu seu coração. O que a moça sentia não era simplesmente medo, medo ela sentia nas noites escuras de bravias tempestades quando era criança. A sensação que se apoderou de Guiomar era uma espécie de temor do porvir que ela adivinhava malévolo, mas que ao mesmo tempo a atraía como poderoso imã.
As ruas por que Cristal andava eram ruas estreitas e estavam desertas. O silêncio sepulcral do lugar foi subitamente estilhaçado por uma música funesta regida por maestro sombrio e maléfico. A jovem sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo esguio de norte a sul e estugou o passo. A música taciturna insistia em soar na cabeça da bela moça. O som parecia ser produzido pelo encontro do vento com as múltiplas embocaduras do tempo camufladas nos gonzos do mundo.
Pouco depois, Cristal entrou em sua casa modesta e, espavorida, girou duas vezes a chave na fechadura da porta. Colou as costas na porta que acabara de trancar, cerrou os olhos e elaborou uma prece silenciosa. Quando abriu os olhos, ficou petrificada, tomada pelo terror. Não havia um escorpião à altura de seus olhos e a um palmo de distância, tampouco uma naja excitada com a pele do pescoço expandida em forma de capuz e pronta para o bote.
O que a jovem viu foi mais assustador que quaisquer aracnídeos ou serpentes. Na penumbra da residência simples de pé-direito baixo, Cristal viu um grande e apavorante morcego dependurado no teto. Sem ação, a moça deixou-se cair em uma poltrona e ali ficou. Faltava-lhe força para fugir. Atacar o mamífero voador? Nem pensar!
Vencida pelo sono e com os nervos aos frangalhos, Guiomar Cristal acabou adormecendo na poltrona. Quando acordou, o sol brilhava e o morcego tinha desaparecido.
Naquele mesmo dia, Gavrilov Princip, jovem sérvio pertencente ao Movimento Mão Negra, perambulava pelas ruas de Sarajevo quando deu de cara com a comitiva do arquiduque Francisco Ferdinando – herdeiro do Império Austro-húngaro – e sua esposa – a duquesa Sophia. Gavrilov abriu fogo. Os tiros acertaram o pescoço do arquiduque e o estômago da duquesa. Ambos morreram antes mesmo de receber socorro.
O assassinato de Ferdinando, ocorrido no dia 28 de junho de 1914, foi o estopim, o acontecimento que deflagrou a Primeira Guerra Mundial. Um quarto de século depois, mais precisamente no primeiro dia de setembro de 1939, Hitler supervisionou pessoalmente a invasão da Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial.
Ainda hoje, em setembro de 2021, Guiomar Cristal aparenta vinte e poucos anos de idade e pode ser vista desfilando sua indefectível beleza...
O (a) leitor (a) atento (a), já percebeu que Guiomar Cristal tem cento e trinta e dois anos de idade. E mais, está difícil estabelecer uma relação entre Cristal e Princip... Bem, Gavrilov acertou o pescoço de Ferdinando, Cristal tem verdadeira fixação por pescoço... Difícil explicar. Mas o fato é que tudo está conectado. Cabe a cada um de nós, tentar detectar tais conexões. Entender é ainda mais difícil que explicar. Como entender, por exemplo, que até hoje Hitler tem admiradores? Escolhas exóticas e preferências esdrúxulas são coisas próprias de gente.
E se o (a) senhor (a) achou que este texto é uma grande viagem, podemos discutir se, grande, média ou pequena, asseguro, de antemão, que viver é mesmo uma viagem.