Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
É sexta-feira, dia em que os caminhões do governo estacionam aos pés das comunidades; dia em que os moradores descem os morros em um cortejo razoavelmente organizado. Velhinhos debilitados, anciãs encarquilhadas, crianças erráticas... Todos seguem em direção aos caminhões.
Naquela sexta-feira, embora considerasse de extrema importância a ocasião, a multidão desceu ao encontro dos caminhões com algum atraso. Os caminhões costumavam chegar no meio da manhã, por volta das dez horas. Mas, uma forte chuva protelou o fluxo de moradores morro abaixo, rumo à boa ação governamental.
A prolongada estiagem deixara o cenário ressequido e desolador. Há muito não caía sequer uma gota de chuva...
Contradição? Nenhuma contradição! A forte chuva acima mencionada era uma chuva de balas; evento corriqueiro, já que as autoridades resolveram armar a população, o que caracterizou um atestado de incompetência: O Estado assumia a incapacidade de oferecer segurança pública, e transferia a cada cidadão a responsabilidade de realizar a própria segurança.
Quem olhava para o alto naqueles dias, via nuvens negras de poluição a vaguear – sem lares ou raízes – como desilusões flutuantes encobrindo, impiedosas, quaisquer esperanças no porvir.
Os semblantes daquelas pessoas eram carregados de uma palidez quase cadavérica de alheamento à vida.
Pouco antes do meio-dia, o agrupamento chegou aos caminhões. Aquele encontro representava um lasso fiapo, uma tênue chance de sobrevivência por mais algum tempo. A esperança de dignidade daquelas pessoas – embora elas não soubessem – estava sepultada em algum dos muitos cemitérios clandestinos das imediações.
Posicionados em uma plataforma estelar, dois observadores estão atentos à cena.
“Aquela é uma amostra inconteste da miséria humana”, diz um dos observadores, apontando tristemente em direção à multidão reunida em torno dos caminhões.
Ou a decrepitude da raça”, diz o outro observador, também tomado pela tristeza.
“É como se estivéssemos olhando para um exército que acabara de saltar das páginas de um livro”, pausa comovente, “um livro de absurdos que está sendo escrito, mas ainda não chegou ao epílogo.”
“E as personagens são simulacros de seres ainda não catalogados.”
“Em cenas que perpassam pelo mundo dos pesadelos.”
“De inauditos e malditos pesadelos em cenários de caquexia extrema.”
“Na fase evolutiva em que aquelas pessoas se encontram, só é conceptível um líder, sacerdotal ou guerreiro, tanto faz, desde que esteja vestido e investido de truculência.”
“Nos dias em que ocorre aquela cena, a insânia não padece de insônia, está diuturnamente desperta.”
“O que mais entristece é saber que muitas gerações não viverão sob as sombras de árvores, morrerão sob a sombra da estupidez.”
“Mas nem tudo está perdido, enquanto houver amor, haverá esperança.”
Naquela sexta-feira caiu uma chuva. Correu a notícia entre os seres das estrelas de que a chuva fora provocada pelas lágrimas dos observadores, enquanto presenciavam a multidão gritando efusivos vivas ao governo, acotovelando-se na tentativa de agarrar os maiores ossos espalhados sobre as carroçarias dos caminhões.