Antonio Rocha Bonfim (Foto: Divulgação)
Fui a Cafarnaum, onde Jesus Cristo se hospedava e onde há uma igreja construída sobre as ruínas da casa do Apóstolo Pedro; fui a Caná, onde Cristo realizou o primeiro milagre, transformando a água em vinho; fui a Tiberíades; e fui a Nazaré, onde Jesus viveu com a família até o início de sua vida pública. Da Galileia, segui no sentido Sul, até Jerusalém, cidade de célebres monumentos, como o muro das Lamentações e a Cúpula do Rochedo. De Jerusalém segui rumo a Noroeste, até Tel Aviv-Jaffa, na costa do Mediterrâneo.
Talvez tenha sido graças à visita à Basílica da Anunciação; quiçá por ter caminhado pela região em que Jesus passou a infância e exerceu grande parte de seu ministério; por ter respirado os ares da cidade Santa... por todas as alternativas anteriores ou nenhuma delas. Fato é que, em Tel Aviv, recebi a benção de encontrar Marta Amoronova. Se eu acreditasse no acaso, diria que nosso encontro foi casual.
Eu estava comendo kebabs – bolinhos de carne de carneiro, com um tempero elaborado, nozes e salsinha picada, quando a meu lado soou as palavras:
“Está faltando uma pitadinha de canela.”
Girei noventa graus e, ali estava Marta. Tinha lábios rosados, carnudos – naturalmente carnudos, sem os artificialismos em voga hoje em dia – e convidativos, sorriso indefectível e olhos inacreditavelmente belos – de um azul profundo e ímpar -, desafiadores e fatais. Aqueles olhos de deusa travessa podiam fulminar qualquer um.
Aceitei a sugestão de Marta quanto à canela. Passamos o restante do dia visitando museus e zanzando por Tel Aviv; à noite, fomos jantar em um discreto restaurante. A gastronomia israelense, além de mesclar tradições seculares e tendências contemporâneas, é extremamente picante; a pimenta-malagueta, por exemplo, é muito apreciada em Israel. Naquele jantar, serviram-nos uma pasta quente de pimenta denominada harissa. Mas o calor que senti não foi causado pela harissa, este pormenor eu resolvi com pita, o tradicional pão do Oriente; foi Marta quem me provocou calor, ela estava estonteantemente bela. Não se permitir envolver é uma das regras básicas de sobrevivência no mundo dos espiões. Mas, como disse Erasmo – o de Roterdã, não o Carlos -, o mundo precisa de alguns grãos de loucura. Deixei-me envolver por aquela mulher com o entusiasmo de quem recebe um presente de Deus. Marta quebrou a mesma regra, já que também era espiã. Foi assim que Marta Amoronova fez de mim um aspirante a poeta – condição inexorável a todos os homens que encontram uma musa.
Eu tinha um trabalho a ser realizado na Itália – no cano da bota -, o alvo era um chefão da máfia siciliana radicado em Roma. Já o trabalho de Marta era na Espanha. Eliminamos primeiro o alvo espanhol, depois fomos para Roma, onde eliminei meu alvo. Decidimos ficar mais alguns dias em Roma. Uma tarde caminhávamos rumo à fonte do Mouro, e Marta pediu que eu a fotografasse; afastei-me com a câmera para enquadrá-la. Então ela sacou uma pistola e disparou em minha direção. Ainda recordo o barulho dos corpos caindo, olhei para trás e vi, estendidos no chão, os três assassinos que estavam prestes a me atacar. Marta guardou a pistola e sorriu e eu bati a foto.
Há décadas não vejo Marta Amoronova, a bela espiã russa. Agora estou aqui, sentado à mesa de um bar. A lembrança de Marta nunca me abandonou. Ouço um barulho vindo da porta do bar. Toco minha automática e olho, é só um bêbado à procura de seu amigo engarrafado. Meu gesto foi automático. Morrer com uma bala seria menos doloroso que morrer de saudade. Morro lentamente desde que vi o amor na tela viva dos olhos de Marta... Em Tel Aviv. No mais, continuo a ser um aspirante a poeta.