Dia desses, recebi ligação de uma pessoa que se identificou como sendo Ildeberto, filho do Zezão rezadô. Meu cumpadi Dimirsu – Edmilson Zanetti – foi quem passou meu contato. E, conversa vai, conversa vem, ficaram sabendo da minha amizade de longa data com o pai de Ildeberto. Em várias oportunidades, escrevi sobre Zezão rezadô nesse espaço e, para minha surpresa, ele as lê. Meu amigo foi rezador oficial em fazendas e sítios pelas redondezas. Marcamos de nos encontrar. No dia, estava ansioso para revê-lo. Afinal, foram 50 anos. Ao vê-lo, velhas lembranças vieram à tona.
José Luís Alves, hoje com 72 anos, caboclo alto, forte, não aparenta a idade que tem. Na roça fez de tudo um pouco. Também foi vítima do grande êxodo rural. Vendo partir as famílias pra cidade, também partiu e nunca mais nos vimos.
Trago boas lembranças dele. Uma delas foi durante a Copa do Mundo de 1962, no Chile, na qual o Brasil tornou-se bicampeão na partida final contra a Tchecoslováquia, ao ganhar de 3x1. Eu, ainda menino, fui com outros levar a merenda da tarde à roça. Levamos junto um radinho de pilhas de capa de couro marrom da marca Mitsubishi. Era julho, época da colheita de café. O céu estava nublado, no espigão, em meio aos cafezais, o vento frio fazia trincar os dentes. Os caboclos se reuniram na hora do jogo em torno de uma fogueira no meio do carreador, muito antes de o jogo começar. Aproveitaram as brasas para assar batata doce e milho verde na palha.
O receptor foi colocado dependurado no galho do cafeeiro. A rádio Rio Preto PRB8 entrou em cadeia com a Bandeirantes, de São Paulo. A grande final foi narrada pelo inesquecível Fiori Giglioti. A cada gol, os caboclos rolavam nas leiras, de tanta felicidade. E, ele, claro, era o mais afoito.
No dia do nosso encontro, ele se lembrou da crônica que escrevi de quando foi convidado para rezar terço em intenção da alma de uma pessoa falecida num sítio próximo. Ao lembrar do fato, não conseguimos conter o riso. Ele contou sua versão: quando chegou para rezar, o altar estava pronto. A sala, lotada de familiares e conhecidos, todos pesarosos. Alguém gritou lá do fundo: “Chegô u rezadõ”!
O defunto sobre a mesa, coberto com lençol, aguardava o caixão que viria da cidade. Foi pedindo passagem entre as pessoas e finalmente chegou em frente ao altar. Ajoelhou-se, fez o sinal da cruz e ouviu, embaixo da mesa, o rosnar de dois cachorros. Pensou: só faltava começarem a brigar. Dito e feito. Os bichos se estranharam e a briga foi feia. Alguém se lembrou de jogar água fria para apartar. No que jogaram, acabou sobrando para o pobre defunto. Tiveram que buscar uma toalha para enxugá-lo. Enfim, a reza reiniciou.
Quando tudo parecia que ia bem, nova gritaria. O defunto, coitado, obeso que era, fez com que as pernas da mesa não suportassem seu peso e cederam, fazendo-o rolar pelo no chão. Ao ouvir o barulho, Zezão olhou para trás e não acreditou no que estava acontecendo. O defunto, enrolado no lençol, jazia escarrapachado. Todos correram para o quintal. Muitos foram embora para suas casas, apavorados, Zezão inclusive.
Não houve mais clima para continuar. No outro dia, não se falava em outro assunto na região. O féretro seguiu somente com familiares para o cemitério de vila Borboleta, atual Bady Bassitt.
Marcamos café para novo encontro. Espero que, dessa vez, não demore outros 50 anos.